
Gaita-de-Foles: O Sopro da História que Une Culturas
A Alma Soprada da Gaita-de-Foles: Uma Viagem pelo Tempo e Pelas Culturas
Poucos instrumentos conseguem encapsular a alma de um povo e atravessar séculos de história como a gaita-de-foles. Embora associada frequentemente às Terras Altas da Escócia, a sua origem e difusão mundial revelam uma complexidade cultural que vai muito além do estereótipo de uma suposta cultura “celta”. Este aerofone, cuja génese remonta ao Mediterrâneo, carrega consigo as vozes de pastores, guerreiros e festividades populares, cruzando fronteiras geográficas e temporais.
A origem da gaita-de-foles é objeto de debate há muito tempo. Estudos recentes apontam para a sua invenção na bacia do Mediterrâneo ou no Próximo Oriente, regiões ricas em matéria-prima essencial para a sua confeção, como o couro de cabra. Termos como "ghaida" ou "gaida", utilizados em várias línguas, refletem esta ligação ao animal, sugerindo uma origem funcional antes de se tornar um símbolo cultural.
Historiadores romanos, como Suetónio, e filósofos gregos, como Dião Crisóstomo, registaram a existência de um instrumento semelhante, o aulos, utilizado pelos soldados romanos em marchas. Não será, portanto, descabido supor que o Império Romano foi um dos principais vetores de disseminação da gaita-de-foles pela Europa.
Em Portugal, a gaita-de-foles reflete a forte ligação cultural e histórica com a Galiza, as Astúrias e Castela-Leão. Os sons do ponteiro e do roncão ecoam em festas populares desde o Minho até Trás-os-Montes. A "gaita galega", a "gaita mirandesa" e a "gaita de Bravães" são algumas das variantes que enriquecem o património musical português.
No Minho, os Zés-Pereiras tornaram-se ícones sonoros das romarias, enquanto em Trás-os-Montes, as gaitas transmontanas mantêm vivas tradições que dialogam com as regiões fronteiriças espanholas, como Sanabria e Aliste. A gaita-de-foles é mais do que um instrumento; é um elo cultural, uma ponte entre povos vizinhos.
Este objeto musical encontrou na Galiza e nas Astúrias um terreno fértil para florescer. Nas terras altas galegas, tornou-se sinónimo de resistência cultural e celebração identitária. A Escócia, por outro lado, transformou-a num ícone nacional e num instrumento de guerra. À volta das Great Highland Bagpipes, com os seus múltiplos bordões, ressoaram mitos da sua utilização em batalhas históricas desde os tempos medievais, quando esta é, contudo, uma criação barroca. Verdade é o ecoar da sua sonoridade em vários campos da Primeira Guerra Mundial, por entre lamentos aos soldados caídos e gritos patrióticos.
A partir do final do séc XVIII, a gaita-de-foles começou a perder protagonismo nas cortes europeias, suplantada por instrumentos de metal e madeira mais adaptados à estética musical emergente. Mesmo assim, resistiu no seio de comunidades rurais, preservando-se em festividades locais. Em Portugal, nos últimos anos, iniciativas como o de reavivar exemplares intemporais como a gaita transmontana e mirandesa (que nunca deixaram de se tocar, até à esquecida gaita de Bravães (Ponte da Barca) mostram como este instrumento pode regressar ao protagonismo cultural.
Hoje, a gaita-de-foles não conhece fronteiras. Presente em dezenas de países, do Norte de África ao subcontinente indiano, mantém-se como símbolo de ligação entre tempos e geografias. É um testemunho vivo da engenhosidade humana, da capacidade de transformar elementos simples – couro, madeira e ar – em algo transcendental.
Nos dias 9 e 10 de março de 2012 teve lugar a primeira conferência internacional da Gaita-de-foles, promovida pela musicóloga Cassandre Balosso-Bardin. No segundo dia da conferência ficou acordado celebrar todos os anos, a cada dia 10 de março, o Dia internacional da Gaita-de-foles, evento dinamizado pela International Bagpipe Organisation e que tem ganho eco nos mais variados países onde a gaita-de-foles se faz ouvir.
Mais do que um instrumento, a gaita-de-foles é uma metáfora do fluxo da história. O ar que se move na bolsa, como o sopro da vida, ecoa o passado e inspira o amor por manter viva a música tradicional.
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