“O Lado Certo da História”

“O Lado Certo da História”

Surpreende-se, em vários debates contemporâneos, uma perigosa lógica de hostilização pessoal. Já não é a colocação do debate em termos de simples oposição de posições, um modo de afrontação natural que assenta no pressuposto de que a realidade humana é plural e de que cada um pode deparar com quem tenha diferente entendimento, mesmo que errado, mesmo que equivocado – mas com quem, precisamente por isso, se entra em diálogo.

A pretensão é de outra índole, e bem mais radical: a de que só os que assumem um entendimento de antemão qualificado como decente, digno, civilizado, moderno, progressista, válido, podem participar na esfera pública.

É claro que quem não abdica – e aí me incluo – de pressupor certos parâmetros de validade ao próprio discurso presume a sua correção, e, por isso, tenta sustentá-lo com vigor e convencer quem tenha diferente entendimento. Julga mesmo que, quando assim não ocorra, se mergulha na perfeita irracionalidade, negando-se possibilidade ao pensamento.

Mas há uma diferença entre estar convencido da logicidade do próprio discurso (do seu «lógos», da sua razão, da sua justeza) e a prática, bem distinta, de se subtrair ao diálogo pela radical hostilização do adversário. São mesmo posturas radicalmente antagónicas. Da convicção da justeza do próprio discurso extrai-se a abertura ao diálogo e a esperança no seu bom sucesso: porque o discurso se crê fundado em boas razões, sabe que leva consigo uma força, a de ser eventualmente capaz de persuadir. Mas também uma vulnerabilidade: todo o diálogo tem duas vias, e, por isso, pode acabar convencido quem apenas pretendia convencer, seja por, ao expor as suas razões, concluir pela sua fragilidade, seja pelas melhores razões oferecidas por aquele a quem queria converter para o lado da verdade. Bem diferente é a postura subjacente a essa recusa apriorística de entrar num qualquer diálogo. Pelo receio da pouca capacidade persuasiva das razões, se as houver, que motivam o próprio entendimento?

Pode discutir-se tudo? Pode discutir-se sempre? Infelizmente não. Há circunstâncias em que as palavras podem pouco, ou mesmo nada. Como dialogar com quem se decidiu pela surdez? Que fazer perante a pura violência que não dá espaço à palavra? A violência não pede diálogo, não pede resposta, não pede escuta: pede apenas objetos sobre os quais se possa impor. Não quer compromisso, apenas hegemonia.

Mas quando, em nome da “civilização”, se afirma que qualquer posição de um outro, quando dissonante daquela que se propõe, é uma forma de “violência”, mesmo quando ainda é apenas e só discurso; quando, em consequência, se priva um qualquer outro da possibilidade de entrar em diálogo, de poder confrontar pela palavra; quando, decidindo-se alguém pela surdez, torna o outro mudo, por muito que ele pretenda tomar a palavra – então a violência, nesse caso, não está do lado de quem usou da força, mas de quem usa uma palavra que cala, silencia, ignora, desqualifica.

É uma forma de violência refinada, por certo. Talvez até “elegante”, “civilizada”, “decente”. Não é sanguínea. Mas uma violência doce – adocicada pelo seu bom-tom, pelas suas bandeiras, por sentir os ventos da história do seu lado –, é ainda assim uma violência, pois um adjetivo restringe e especifica, mas não elimina a realidade do substantivo. É por isso de violência que se trata. Pois se o ser humano é, na tradicional definição de Aristóteles, um “animal racional”, ou, na sua expressão exata, um ser vivo que “tem lógos”, ou seja, que tem um discurso cuja razoabilidade se expressa através da palavra, e se essa manifestação é umas das mais claras formas de expressar a sua humanidade, negar ao outro a possibilidade de dar conta das suas razões não é senão uma desumanização realizada em nome da civilização.


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