Do Cristianismo às Ciências Naturais
Do Cristianismo às Ciências Naturais

Do Cristianismo às Ciências Naturais

A questão do papel do Cristianismo no surgir das Ciências Naturais, tal como as hoje concebemos, é uma das mais interessantes e, ao mesmo tempo, desconhecidas. Por Ciências Naturais refiro-me àquelas ciências que aplicam a exatidão à observação, de modo a desenvolverem teorias quantitativas descritivas de leis de pendor universal, sistemático e viável em si mesmo. Face às contínuas levas de desinformação a este respeito, pode parecer estranho dizer que tais ciências surgiram graças ao, e no seio do Cristianismo. Mas esse é um facto.

Com o dito antes, não pretendo defender a ideia de que outras civilizações não contribuíram para o desenvolvimento da pré-história das Ciências Naturais. O saber grego, indiano (de onde vem a nossa numeração, inclusive no que concerne ao algarismo zero), chinês e árabe (neste caso, em confronto com o maometanismo, e à sombra de pensadores cristãos e judeus com nomes árabes ou, então, trabalhando para mecenas que, depois, ficaram com o seu nome para a história) são exemplos disso.

O que pretendo sustentar é apenas que — seja por serem panteístas, seja por estarem ligadas a uma teológica não-racional e à ideia de um transcendente capcioso e caprichoso —, aquelas não deixaram que as leis físicas se tornassem a base de algo como aquilo que entendemos serem as Ciências Naturais.

Com efeito, o eclodir destas Ciências só foi possível com um Cristianismo que, de um lado, separa claramente o Cosmos do Criador (recusando toda a forma de panteísmo que acabasse por dizer que o estudar a natureza seria um querer devassar e ferir a vida da própria divindade) e, do outro lado, alega que Aquele suscitou esta mesma natureza com "medida, número e peso" (Livro da Sabedoria, 11,21), imprimindo "uma ordem sobre o que criou pela Sua sabedoria" (Livro de Ben Sirá, 42,21). Ou seja, outorgando ao real um modo regular de ser, o qual, dentro de certos limites, é observável, analisável, cognoscível e previsível segundo modelos matemáticos que, porém (e convém mencionar isto com vigor), são sempre anteriores às ditas Ciências Naturais.

Por outras palavras, o Cristianismo — marcado pela visão hebraica de um Deus ordenador de todas as coisas — cedo aderiu à confiança numa estrutura regular e permanente de uma Criação que considera como sendo não divina e, ao mesmo tempo, desprovida de uma animação inteligente irregrada a nível das realidades que a constituem (as quais, caso contrário, poderiam, pela sua deliberação, agir de um modo diferente do estabelecido pelas leis da natureza).

Eis uma confiança que era, e é, concomitante com a, e de certo modo até justificante de dois elementos essenciais. De um lado, a confiança na criativa fidelidade amorosa, racional, metódica e lógica de um Deus que, por um lado, "cria do nada" (Segundo Livro dos Macabeus, 7,28)  e aqui, ao se dizer que Deus sustenta tudo no ser a cada momento, temos a negação de todo o panteísmo e a base para a ideia de inércia (segundo a qual um corpo não pode alterar, sem forças internas ou externas que em si atuem, o seu repouso ou o seu movimento). De outro lado, que Ele não interfere aleatoriamente no Universo, suspendendo ou limitando, de modo contingente ou não, a autonomia, quer do mesmo, quer das leis que o regem.

Posteriormente, e baseando-se no genial João Filópono (precursor, no séc. VI, da noção de “ciência natural” e do que serão conhecidas como a primeira e a terceira “leis de Newton”) e no sistema experimental de Antémio de Tales (arquiteto da igreja de Santa Sofia em Bizâncio), já entre o séc. XII e o séc. XIV, foram os teólogos cristãos que lograram purificar contributos anteriores e projetá-los para patamares ímpares.

Como marcantes temos os nomes:

Adelardo de Bath (1080-1152) e a sua recusa de se recorrer a Deus para explicar tudo o que ocorre; 

Roger Bacon (1214-1294) e a cognição linear da luz; 

Thomas Bradwardine (1290-1349) e o apelo às leis matemáticas universais;

Richard de Wallingford (1292-1336) e a mecanização da medição do tempo;

Jean Buridan (1300-1358) com a sua teoria do “ímpeto” e o seu, àquela inerente, afastamento da física e da cosmologia de Aristóteles para explicar o movimento dos corpos; etc.

Observe-se que os pensadores cristãos instilaram vida naquilo que desaguará no surgir das Ciências Naturais justamente devido à sua crença cristã. Aquelas Ciências não surgem na base de um processo, mas no seu culminar, pois, em derradeira análise, não foi em primeiro lugar pela observação, nem pela experiência que elas irrompem em cena. Tudo isto baseia-se na crença numa Trindade-Amor (que permite uma Encarnação de Deus que faz do tempo uma realidade linear e não cíclica) que fez brotar as Ciências Científicas como áreas autónomas do saber, a partir, sensivelmente, da passagem do séc. XVI para o séc. XVII europeus.

Deste marco cronológico em diante, seria fastidioso falar do contributo dos cristãos para as Ciências Naturais (e não só), sendo que, apenas num breve apontamento e segundo um estudo feito pela Universidade de Cambridge no ano de 2020, por um lado, 83% das grandes descobertas científicas levadas a cabo desde aquele surgir das Ciências Naturais foram realizadas por crentes cristãos, e que, por outro lado, 64% dos vencedores dos Prémios Nobel naquelas áreas se afirmam como cristãos.

Dito isto, pode-se perguntar com toda a legitimidade: houve atritos entre alguns cientistas e alguns membros da hierarquia da Igreja Católica e de outras confissões cristãs (e até, e justamente por causa da relação entre a fé e a ciência, entre membros dessas hierarquias)?

Sim, houve, mas, sem se estar aqui a entrar em detalhes, isso não obstou a que tais atritos tenham sido geralmente e durante séculos entre indivíduos cristãos. Isto é, entre pessoas crentes no Cristianismo que entendiam de modo diferente qual deveria ser a natureza e a meta mais fecunda para aquela relação (basta recordar o caso Galileu Galilei, no qual, recorde-se, foi a Igreja que mais se preocupou com a autonomia entre a Teologia e a Astronomia e a valorização destas em si mesmas).

Também seria estultícia ignorar que esses atritos, quando surgiram e na sua extrema maioria, não se deveram, do lado dos membros das hierarquias cristãs, propriamente a convicções religiosas profundas. Mas, pelo contrário, à ausência dessas convicções que, assim causando inseguranças, os fez acometer contra quem ia colocando em causa os seus supostamente “bem ordenados” “mundinhos” mentais.

Por fim, diga-se, em abono da verdade, que se há alguém, nos dias de hoje, que tem problemas sérios na relação entre a fé e a ciência não são propriamente os seguidores do Cristianismo (exceto os membros de grupos biblicistas), mas alguns cientistas que se arvoraram em expoentes tonitruantes do “New Atheism” (Richard Dawkins e Sam Harris podem ser aqui evocados). Um “ateísmo” que, contudo, de “novo” não tem nada, dado que as suas argumentações anti-Cristianismo não passam de requentares, a partir de novos embrulhos, de antigas teses há muito tempo rebatidas.

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Fotografia de capa: Scriptorium medieval  Manuel M. V.

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