
Este Mundo que Nos Entra
O mundo está cada vez mais “ligado” e veloz, como consequência, estamos a perder o contacto com a lentidão necessária que as relações nos pedem. Num mundo hipersónico em que tudo “está ligado” e em contacto, o ser humano, apresenta recorrentes sintomas de se estar a desligar de si e dos outros. Está ligado à máquina, à rede, mas sem chão para si. Uma “Rede” que cada vez mais se emaranha e vira teia.
É urgente reencontrar um ritmo próprio ao do humano, um ritmo com espaço e tempo para tudo, para a velocidade, para a aceleração, para a lentidão e para a pausa.
Perante este cenário, importa perguntar: como contactamos com o outro e com o mundo?
No ser humano o contacto desenvolve-se pela utilização das funções motoras e sensoriais, estas são o veículo primeiro, o meio de contacto que nos permitem ter acesso ao que se experimenta e vivencia.
O contacto com o mundo, connosco e com o outro, implica uma consciência ativa, um dar-se conta, um prestar atenção. No entanto na vertigem dos dias atuais, observa-se recorrentemente a uma progressiva perda de contacto com a realidade vivida. Perda que se manifesta entre outras, pela dificuldade de experimentar a realidade tal como esta se apresenta.
Até que ponto, hoje, é difícil ao ser humano concentrar-se sobre o vivido, sobre o que experimenta aqui (corpo) e agora (presente)?
Olhemos para o começo.
Como se desenvolve esta função de contacto que capta o mundo?
O início a criança tem uma extraordinária necessidade de confiar no seu ambiente, pois no princípio deve aceitar as coisas como elas vêm ou livrar-se delas quando puder e como souber. Se o seu ambiente é de facto digno de confiança, o material que recebe será nutritivo e assimilável, o que pode não acontecer e fazer com que a criança vá acumulando dentro de si experiências não “mastigadas”, não digeridas. Assim ela engole “mundo” sem poder assimilá-lo (Perls).
Tudo é alimento (ditado indiano)
O alimento que nos oferece o mundo externo, o alimento dos factos e atitudes sobre o qual se constroem as personalidades tem que ser assimilado exatamente da mesma forma que o nosso alimento real. Ou seja, pegando no exemplo da digestão, tem de ser desintegrado, analisado, separado e de novo reunido da forma que nos será mais útil e valiosa (Perls).
Se tragamos a realidade do mundo, se este for meramente engolido por inteiro, ele não contribuirá para o desenvolvimento da nossa personalidade. Se não “mastigamos a realidade do mundo” torna-nos semelhantes a uma casa tão sobrelotada com coisas de outras pessoas onde não sobra lugar para as nossas. Transformamo-nos em latas do lixo de informação, estrangeiras, estranhas e irrelevantes.
Estamos a falar do primeiro modo de relação que estabelecemos com o mundo, a Introjeção — como eu recebo o mundo em tudo o que envolve o mundo. O que recebemos do mundo, das relações interpessoais, primeiramente tem de ser mastigado para poder ser assimilado.
Simbolicamente e no concreto a mastigação é a atividade prototípica para tornar o mundo assimilável às próprias necessidades. Com esta atividade começa inevitavelmente a existir um conflito entre aceitar a vida como ela é, ou mudá-la, e esse conflito, irá durar enquanto a pessoa viver.
A tarefa primária ao desfazer a introjeção pela “mastigação psíquica” é poder focar-se em estabelecer dentro do indivíduo um senso de escolha, para que este possa vir a identificar as escolhas que se lhe apresentam como disponíveis, para que desse modo ele possa vir a estabelecer o seu poder de diferenciação entre o Eu e o Outro, o que é meu e o que não é.
Qualquer experiência que aumente o senso de Eu do indivíduo é um passo importante para desfazer a introjeção (as crenças, ideias, preconceitos) quando esta não é útil e saudável para a pessoa (Ponciano).
A introjeção quando não adequada às reais necessidades da pessoa é prejudicial. Quando assim é torna-se algo lesivo, pois introjeto e aceito opiniões arbitrárias, normas e valores que pertencem aos outros e que eu ainda não as fiz como minhas, ou não me identifico de todo, pois elas pertencem aos outros e não a mim.
Ao “engolir” estas coisas sem querer e sem saber defender os meus direitos, por medo do que isso possa despertar (por exemplo a agressividade), estou a amputar uma necessidade que é minha por direito, o direito à autoafirmação e autonomia.
Se a introjeção não desejável se mantém, com a deglutição do meio, dos acontecimentos, sem a mastigação necessária, isto vai levar à manutenção de crenças, atitudes e comportamentos “impróprios” — que não são do próprio” — sendo estes como já referimos aceites sem escolha. Daqui resulta aquilo que chamamos de introjetos, objetos psíquicos que passam a ser como um corpo estranho que ganha vida própria internamente.
Uma vez que aquilo que é ingerido e engolido sem ser digerido passa a ter um nível de autonomia grande, permanece autónomo, ocupando espaço na nossa identidade (isto é meu), diminuindo a nossa consciência e a nossa liberdade, como se pode verificar nos mandatos parentais e sociais, nos preconceitos, entre outros.
Uma pessoa saudável e autorregulada toma para si o que é nutritivo e rejeita o que lhe é tóxico para integrar as partes nutritivas em si (assimilação) e recusar ou expelir o que não lhe serve. (Yontef).
O que vem tem de ser digerido, se queremos dominar o que vem, tornando-se assim algo efetivamente nosso e realmente constitutivo da nossa personalidade. Quando assim é, o que vem passa a ser nosso de facto e não apenas dos outros. Escolhemos, mastigamos e assimilamos, não engolimos. Numa sociedade onde tudo nos é dado pronto, poder escolher que “alimento psíquico” queremos é fundamental para que possamos ser saudavelmente nutridos pelo que há no mundo.
Sugestões de Leitura |
• Perls, F. (1977). A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. In A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. São Paulo: Summus.
• Ribeiro, J. P. (1997). O ciclo do contacto. São Paulo: Summus.
• Yontef, G. M. (1998). Processo, diálogo e awareness: ensaios em Gestalt-terapia. São Paulo: Summus.
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