O Cristianismo e o Direito Internacional

O Cristianismo e o Direito Internacional

Hoje em dia, face ao que se está a passar na Ucrânia, muito se tem falado do papel e importância do Direito Internacional que, de facto, se revelou totalmente impotente para impedir e regrar tal conflito.

Face a isto, não é despiciente, recordar o papel decisivo da reflexão universitária por parte de crentes cristãos, neste caso ante o contacto com outros povos até então totalmente desconhecidos dos europeus, na formulação do que hoje é conhecido, justamente, por Direito internacional; isto é, e de modo muito breve, o ordenamento legal das relações internacionais entre nações.

A promulgação de leis e do dever de se respeitar a legislação antecede enorme e claramente o Cristianismo, mas é igualmente incontestável que os valores desta religião lançaram as bases para fortalecer e regrar a promulgação de leis justas e humanas e a obediência responsável às mesmas. Convicto da realidade da existência de um Deus-Amor infinitamente justo (embora não segundo os critérios humanos do “premiar o bom” e “castigar o mau”, antes sempre esperando que todos queiram acolher a sua proposta de partilha de vida segundo a lógica do amor), o Cristianismo valoriza a ideia de que, sendo os seres humanos criaturas iminentemente sociais, a realização plena dos mesmos, numa felicidade comunitária só plenamente possível no amor, só será realizável mediante leis humanistas que considerem as pessoas como o princípio, o sujeito e o fim das mesmas.

Na realidade, acreditando que Deus não quis reservar só para Si o exercício de todos os poderes, antes quis e quer confiar a cada criatura as funções que ela é capaz de exercer (segundo as capacidades da sua própria natureza), o Cristianismo advoga que tal modo de proceder deve ser imitado na vida social, através de leis como as antes referidas. Leis que, além do já mencionado, devem ser sempre iluminadas por uma sã razão e uma sadia compreensão da natureza humana.

Uma tal razão esta chamada a escorar tais leis e, assim, a garantir que elas ajudem à constituição de uma sociedade bem estabelecida, sobretudo graças ao salvaguardarem que a esta sociedade presida uma autoridade legítima. Mas não basta ser legítima. Tal autoridade também precisa de ser ciente de que deve proteger as instituições e dedicar, mediante meios moralmente lícitos, o esforço necessário em prol do bem comum de todas as pessoas. 

A verdade é que, especialmente devido, de um lado, ao contacto com os povos africanos, ameríndios e aborígenes australianos (que se encontravam em patamares civilizacionais menos desenvolvidos), e, de outro lado, à exploração, por parte de dirigentes e mercadores europeus, de tais povos, muito do que foi antes afirmado sofreu um profundo abalo. Chegou-se, inclusive, a questionar se eles eram formados por pessoas propriamente humanas.

As autoridades do Cristianismo intervieram depressa para superar estas dúvidas (afirmando cabalmente o estatuto ontológico de pessoas humanas para os membros desses povos). Contudo, na prática, e devido aos imensos lucros que se quis obter pelo trágico e desumano comércio e uso de escravos (mormente os comprados pelos europeus aos esclavagistas maometanos em África e na Ásia), tais intervenções raramente foram executadas. Mas o facto é que foram proclamadas. Exporemos, de seguida, apenas dois exemplos.

No séc. XIII, Tomás de Aquino (1225-1274), uma das maiores mentes da humanidade, afirmou:  que a escravatura é um pecado gravíssimo contra a natureza humana no seu estado desejado por Deus; que nada do que procede de Deus anula o que procede da razão humana; e que nada de natural pode ser retirado, ou outorgado, a qualquer ser humano em função do que se pode considerar ser os seus eventuais pecados.

Já em 1537, o papa Paulo III (1468-1534-1549), pela encíclica “Sublimis Deus”, afirma (sob pena de que quem ignorasse as suas indicações dever saber que se havia colocado fora da comunhão com a Igreja) que os povos ameríndios, bem como todos os demais, são constituídos por sujeitos integralmente humanos nas suas naturezas e pessoas, e que, assim e na linha do já postulado por predecessores seus a respeito de outros povos já conhecidos – por exemplo o papa Eugénio IV (1383-1431-1447), em 1435, com o texto “Sicut Dudum” –, não podiam ser escravizados nem expropriados das suas terras.

Posto isto, o facto é que foi preciso refletir de um modo muito mais firme sobre as bases filosófico-teológicas de tais posições, para que elas dessem um salto qualitativo e lançassem raízes mais profundas nas ações humanas. E note-se, por um lado, que a abolição, no Ocidente, da escravatura só surge quase plenamente no séc. XIX e por ação de cristãos, e que, por outro lado, ainda persistem, nos nossos dias, países que aceitam legalmente que pessoas que não pertençam à religião do estado possam ser escravizadas (já para não falar das práticas de escravização de crianças raptadas, para serem forçadas a se converterem a outras religiões, como tem ocorrido no Sudão, na Nigéria, no Paquistão, etc.).

Pois bem, essa reflexão foi sobretudo levada a cabo pelo sacerdote católico Francisco de Vitoria (1483-1546), honrada e justamente denominado “pai do ‘Direito Internacional’”.

Francisco de Vitoria ponderou as fontes e os limites dos poderes civis e eclesiásticos e apontou a necessidade de uma separação entre ambos (pois, por exemplo, um dirigente político pode não ser crente e isso não lhe retira a legitimidade para governar). Por outro lado, e em particular na sua obra “Acerca dos índios”, realçou a justificação racional para a consideração irrefutável de que todos os habitantes, de terras que iam sendo descobertas pelos Europeus, eram plenamente humanos (seja na sua natureza, seja nas suas pessoas), tendo, por isso mesmo, os mesmíssimos direitos naturais à liberdade, dignidade e posse de bens e de terras.

Ainda no âmbito da relação dos Europeus com os povos que iam conhecendo, Francisco de Vitoria (argumentando unicamente a partir do que o ser humano descobre, com o uso racional da razão, ser o certo para a concretização da sua natureza humana), esclareceu e reiterou cabalmente – na linha do Novo Testamento e do decretado, por exemplo, pelo papa Gregório Magno (540-590-604) – que ninguém podia ser forçado a abraçar a fé cristã (embora, também fruto daquela mesma “lei natural”, esta devesse poder ser anunciada livremente).

Nesta linha, mostrou que não há nenhuma justificação para se decretar guerra a um povo desconhecedor de Jesus Cristo para, desse modo, o obrigar a aderir formalmente ao Cristianismo, acabando por apontar a moldura clássica que ainda hoje norteia o conceito, provavelmente equívoco, de “defesa bélica admissível”. A saber: o ser sempre uma resposta proporcional e crível como possivelmente eficaz (1.º princípio) a uma ameaça real, iminente e injusta (2.º princípio), tendo como meta a implementação de um estado de paz e respeito por todos (3.º princípio).

Ignorar isto dito por Francisco de Vitoria, para um ou outro extremo, é desumano. Desumano.


Ver também |
A Violência na Bíblia
Casamento para os Padres Católicos...
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