O Ser Humano, a Mística e o Amor

O Ser Humano, a Mística e o Amor

Há uma sede de “mais” que assiste a todo o ser humano. De mais vida; de mais saúde; de mais felicidade; de mais alegria… em suma, de mais tudo aquilo que, sendo a expressão natural dos desejos próprios da nossa condição humana, cremos que nos faria mais humanos e mais pessoas.

Face a este “mais tudo aquilo”, há todo um conjunto de pretensões que podem ser satisfeitas, pelo menos parcialmente, por um leque, maior ou menor, de realidades. Contudo, há anseios que, em derradeira análise e por mais que correspondam verdadeiramente ao que nós somos, não são suscetíveis de serem colmatados pelo que existe no Universo. Eis um sinal que mostra, porventura, que deve haver algo mais para além deste Cosmos, caso contrário, aqueles desejos não seriam propriamente condicentes com a nossa natureza – e isto, inclusive pela nossa própria experiência bem lúcida, sabemos que não é o caso.

Um desses tais desejos, que não logra ser plenamente satisfeito pelo que existe connosco na Criação, é o de união plena entre o que somos e, justamente, o aduzido “algo” que não se reduz, simplesmente, aos 1080 átomos que existem. Uma união que, deste ou daquele modo, pudesse garantir que as grandes e fundamentais realidades que nos formam – a nossa memória, a nossa vontade, os nossos afetos, etc. – e a que damos valor – a beleza, a alegria, aqueles a quem amamos e estimamos, etc. – não desaparecerão pura e simplesmente como, numa adaptação de umas palavras de Rutger Hauer, “lágrimas no deserto”.

É relativamente seguro dizer-se que tal união é esboçada, com contornos mais definidos ou mais indefinidos, por quase todas as grandes religiões e/ou filosofias de vida. Claro que – tendo estas compreensões diferentes do que é, por um lado, o ser humano, e, por outro lado, esse “algo” maior do que o existente entre as criaturas –, tal união é descrita de modos diferentes.

Para algumas dessas religiões e/ou filosofias de vida, essa união é descrita como sendo, no fundo, uma fusão da nossa consciência com esse “algo”, entendido, nesses casos, como uma espécie de estrutura fundamental de tudo aquilo que existe, levando a que, por tal fusão, se perca a “ilusão” da nossa individualidade. Para outras religiões e/ou filosofias de vida, a mencionada união é dita mediante o apontar para um desfrute, na antecâmara de “onde” vive esse “algo”, de todos os deleites terrestres elevados ao máximo expoente, algo que faz com que tal união não seja verdadeiramente com esse “algo”, mas apenas com aquilo que se imagina que poderão ser os seus mais gozosos dons vividos sensorialmente.

Há outras compreensões dessa união que é desejada por um “coração” humano que pressente, com todas as fibras do seu ser, que é feito para a mesma. Aquela que, inclusive independentemente do facto de eu ser cristão, estimo que mais jus faz, seja ao que nós somos enquanto seres humanos, seja a tal “algo” a que me tenho referido, é a cristã.

Segundo a perspetiva cristã, esse “algo” é, sobretudo, “Alguém” que, a nível da Sua natureza, é Amor e nada mais do que Amor. Amor dado e acolhido; acolhido e dado – e isto desde todo o sempre. É, pois, o Deus-Amor que só é conhecido e aceite – sem limitações, constrangimentos ou reservas mentais – pelo Cristianismo. Na senda disto, a união com tal Deus-Amor, por um caminho mais seguro ou por outro mais incerto, é a meta da existência de cada um de nós e, ao mesmo tempo e enquanto meta antecipada no quotidiano das nossas vidas em todas as nossas autênticas vivências de amor, a essência da vida humana.

Por outras palavras: a vida mística não é algo de alheio à vida humana, antes sendo a sua meta e a sua consistência mais concreta. Não é algo reservado a umas pessoas extraordinárias, mas o “ADN” fundamental da existência comum de todos nós. Não é algo que se confunde com um conjunto de fenómenos humanos extraordinários mais ou menos bizarros (como, por exemplo, a levitação), sendo, isso sim, a nossa vida diária a ser vivida – de um modo crescentemente consciente, intuitivo e simplificado – na lógica do amor maior, melhor, mais belo e mais alegre. Em suma: a mística é, para os cristãos, o já ir vivendo amando como Deus-Amor ama: até ao fim; gratuitamente; sem limites; sem porquês…

Neste contexto, não há qualquer lugar para que tal união de amor com Deus-Amor comporte uma fusão despersonalizante de quem somos. Como a própria vivência humana do amor autêntico testemunha, o amor pressupõe, garante e cria a alteridade e a personalidade única de quem ama e de quem é amado.

Deveras, quanto mais uma pessoa ama a outra pessoa, mais cada uma delas pode encontrar, e assumir, a sua mais radical verdade e a sua mais firme consistência. Aquilo que é verdadeiro a nível inter-humano, é infinitamente mais verdadeiro a nível da nossa união amorosa com Deus-Amor: por ela, mais nós seremos nós mesmos, e mais Ele será Deus em nós – no que colmatará Sua própria “sede” de nos ver felizes.

Mas não só: naquele mesmo cenário, não há possibilidade alguma de alguém ficar satisfeito por algo que, embora possa ser dado por Deus-Amor, seja distinto d’Este mesmo. A plena satisfação humana, diz o Cristianismo – e garantem os místicos cristãos –, encontra-se na participação festiva e gozosa na própria vida mais íntima de Deus. Uma participação que não anula o que quer que seja verdadeiramente expressão da nossa já presente vivência construtiva do amor, antes a eleva a um patamar de perfeição e subsistência insuperável, eliminando o que de egoísmo nela existe. Para quê querermos menos, quando o máximo nos é oferecido como presente e dádiva?

Já o vimos, mas vale a pena recordar: a mística, desde a perspetiva cristã – que se recusa identificar sempre com todo e qualquer misticismo (sempre malsão) –, é o que de mais real existe em cada um de nós e a pauta do nosso futuro mais denso de autenticidade. Ela é a música que faz vibrar os nossos “corações”, progressivamente tornados capazes de, não só se pautarem pelo mais veraz amor, mas, inclusive e no paroxismo do amor, serem amorizados.

Entenda-se, por favor, muito bem a última palavra do parágrafo anterior: ela expressa a nossa transformação em amor; ou seja: a realidade de que, por uma propriedade bem conhecida desse próprio amor – que faz, no dizer de Petrarca (depois lusificado por Camões), “o amante no amado se transformar” –, o ser humano poder, tanto quanto os limites da sua insuperável condição humana lhe permitem, vir a ser o que Deus é: Amor. Isto não é um sonho quimérico; é uma promessa já feita realidade, cada vez que, em nós, deixamos que a ação transfiguradora do amor do Deus-Amor seja a nossa respiração.

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