A Vida como centro: é a hora, não depois, agora
“Escuta!
A vida é única.
Não tem começo, nem fim.
A sua fonte e finalidade moram no teu coração” (…)Krisnhamurti, in. From Darkness to Light
Prosseguimos aqui a continuidade da reflexão iniciada no artigo anterior: “Planeta Terra a Casa Comum que urge cuidar”. Como referimos anteriormente o Planeta Terra é a nossa casa comum. Casa que para ser sentida como nossa necessita de um processo de introjeção e experimentação da vida como vivência de espaço e tempo comum. Ser humano é coexistir.
Não existimos sem o outro, nem além da relação, pois quando estamos fora do lugar de existência da humanidade adoecemos. Quando assim é, padecemos da ausência de reconhecimento e cuidado mútuo. Coexistir é existir na relação de um tempo e espaço comum, o tempo e espaço (social e cultural) que nos é dado a viver. Esta experiência de partilha de vida faz-nos potencialmente responsáveis por tudo o que acontece no espaço de relação.
Potencialmente, porque podemos não ser responsáveis, negligenciando o cuidado essencial de tornarmos a nossa vida repleta de escolhas que nos são próprias. Escolhas das quais somos responsáveis sejam elas fáceis ou difíceis. Podemos negar essa realidade alienando-nos, separando-nos, no fundo adoecendo, com todas consequências que isso acarreta para nós, para os outros e para a sociedade-mundo que habitamos.
A coexistência humana dá-se, aqui e agora, inserida na concretude do nosso habitar planetário. Trata-se de um habitar que só é pleno quando sentido e experimentado como casa comum. Não existe propriamente a minha casa, o meu país, o meu continente.
Para o planeta terra que é o lugar da nossa habitabilidade não existem fronteiras. Os incêndios, a poluição atmosférica, a degradação dos rios, dos solos e subsolos, não dizem respeito a esta ou aquela nação, pois o que afeta uns, afeta todos. Isso sabemos já há muito tempo. Perante este dado e usando a expressão do psicólogo e psicoterapeuta Ari Rehfeld necessitamos de olhar “retrospetivamente para a frente”, se assim não for, perdemos o sentido de onde viemos, ampliando o desnorte do caminho que se nos apresenta à frente como futuro.
Atualmente o que nos espanta neste e noutros campos é a teimosa e a recorrente dissonância entre o saber cognitivo e o fazer prático. Sabemos, mas não fazemos.
Descuidamo-nos, sabemos produzir tecnologia e desenvolver atividades humanas amigas do ambiente, que é a mesma coisa que dizer amigas de nós próprios, e genericamente falando não o fazemos, pelo menos no tempo oportuno.
Fazemo-lo quase sempre em urgência e em reação aos problemas que se apresentam, que por ignorância reiterada acabam sempre por “nos atropelar”. Regra geral possuímos um grande deficit de escuta.
No campo da preservação e proteção do ambiente não escutamos os apelos que a comunidade científica nos tem legado ao longo dos anos.
O descaso é tão grande que no caso da escolha dos titulares para a pasta ministerial do ambiente, geralmente, salvo raras exceções, os escolhidos/as apresentam-se sem percurso relevante na área e sem ligação ou afinidades claras à defesa, estudo e proteção do ambiente, como se esse requisito fosse algo menor. O que revela a negligência e descuido em preservar o bem público ambiental.
Trata-se de uma realidade que nos pede atenção, escuta e ação. Uma escuta que desencadeie ação, mudança e transformação é uma escuta que só é efetiva quando acolhida. Não escutamos, não agimos, continuamos comodamente no mesmo sítio onde estamos. Esta pertença surdez, faz-nos lembrar o velho ditado: “só ouves o que te interessa”, ela é reveladora de um dos mais graves problemas da atualidade o problema da crise da separatividade (Pierre Weil), ou seja, o problema reside na tendência que possuímos de separarmos o que se passa fora do que se passa cá dentro no íntimo do humano. Trata-se de uma divisão fictícia pois não existe propriamente um dentro e fora rígido, a fronteira não é impenetrável, o que existe, quando numa dinâmica saudável é um renovado fluxo de trocas entre o interior e o exterior.
Aqui convém recordar que a vida é um fluxo dinâmico e renovado, e que foi precisamente o distanciamento desta realidade a origem de uma visão descentrada e fragmentada do processo daquilo que é Vida que nos habita.
Vejamos um exemplo utilizando os quatro elementos naturais: água, ar, terra e fogo.
Como esses elementos naturais se encontram em nós?
A água na maioria da nossa constituição orgânica, somos as nascentes e os rios que bebemos. O ar, no ar que respiramos, somos a qualidade do ar que inalamos. A terra, nos minerais que nos constituem, somos a qualidade dos nossos solos e florestas. O fogo, simbolicamente nas emoções e no ambiente afetivo que experimentamos.
Perante os sinais e sintomas que o nosso planeta vivo nos dá, urge atuar. Necessitamos de mudar, de reorientar o modo de vida. Não para depois, mas para agora.
Sabemos o que temos a fazer, necessitamos de: adequar o nosso modo de vida de forma a garantir a sustentabilidade da possibilidade de vida do nosso planeta-casa, protegendo os seus ecossistemas e todos os seres vivos, adequando o modo de produção para que este seja efetivamente amigo do ambiente.
Encarando a urgência atual não podemos permanecer na apatia e indiferença perante as mudanças ficcionais a que assistimos. Mudanças ficcionais que se apresentam com slogans pomposos, como: “transição verde”, “amigo do ambiente”, “sustentabilidade ambiental”.
De que vale mudar de roupa e aparência se nos comportamos do mesmo modo?
A mesma forma de “caminhar”, o mesmo percurso percorrido, ainda que diferentes na aparência levar-nos-ão sempre ao mesmo destino.
Não, que não necessitemos de uma transição, de sustentabilidade ou de amizade para com o planeta-casa, precisamos e com urgência, mas neste momento a necessidade já ecoa com um grito, o “grito da Terra”. Necessitamos de mudanças efetivas e concretas, não do modo que até então vamos realizando.
Atualmente os Estados investem enormes quantias de dinheiro e recursos no tratamento dos males que civilização atual e seu modo de vida produzem, com o seu consumismo perdedor, em detrimento do investimento no cuidado, educação e preservação. Vivemos um modo de vida consumista que se desenvolve numa deriva autofágica, em vez de uma prevenção e promoção de modos de vida efetivamente mais saudáveis e próximos da natureza, preservando o fluxo dos recursos, ou seja, garantido a troca, a renovação, não o acúmulo e a retenção do que é comum à humanidade e restantes seres vivos. Recursos naturais, esses sim, autênticos e inequívocos patrimónios da humanidade, como é o exemplo da água.
Eticamente pode a água ser privatizada?
A nosso ver não. A água como bem essencial à vida humana deve manter-se no domínio público.
Relembrando aqui que a ética não é mera retórica como muitos e muitas fazem crer, mas sim como um diálogo prático sobre o destino da coexistência comum, pois foi precisamente na sua génese a garantia de uma possibilidade de gestão da justiça do bem partilhado pelos recursos de uma comunidade de destino comum, a humanidade.
Como defendia a saudosa Maria de Lurdes Pintassilgo:
“A qualidade de vida começa no quadro habitacional, possibilidade única de uma vida partilhada nas tarefas e nos momentos de repouso em que se recria o espírito e se fortalecem os laços dos afetos. É aí que se forja a ética do cuidado das pessoas umas pelas outras e se constrói sobre bases sólidas uma sociedade mais segura e confiante.”
E no seu encalço, é cuidando da nossa casa, que cuidamos da casa comum.
Em suma, é cuidando do presente que preservamos um futuro mais humano e ecologicamente sustentado e sustentável, é dizer defensável na humanidade e suas possibilidades de criação e evolução em dignidade e respeito com garantia de preservação e cuidado de todos os seres vivos e seus habitats.
Sugestões de leitura |
Cuidar o Futuro Comissão Independente População e Qualidade de Vida, presidida por Maria de Lourdes Pintasilgo, Lisboa, Trinova Editora, 1998.
Krishnamurti, J (1997). Natureza e Meio Ambiente. Edições 70.
Texto e Fotografia | Vítor Fragoso - Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta
Ver também | Planeta Terra a Casa Comum que urge cuidar
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Ver também | Viver com a ansiedade
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