No México o Dia dos Mortos é um hino à Vida
No México o Dia dos Mortos é um hino à Vida
No México o Dia dos Mortos é um hino à Vida

No México o Dia dos Mortos é um hino à Vida

Flores de calêndula inundam os cemitérios, altares em forma de “ofrenda” onde não faltam as fotos e os objetos mais estimados dos antepassados, cortejos alegóricos com multidões vestidas de esqueletos andantes ao som da música mariachi, com a “calaveira” Catrina como personagem principal. É assim o “Dia de Muertos” no México, classificado como património imaterial da Humanidade em 2008.

O México é dos países mais ricos do mundo no que diz respeito às suas tradições. Com um vasto património intangível preservado desde épocas milenares pré-colombianos, mistura de culturas ameríndia e hispânica, o México conserva muito do passado construído por civilizações tão importantes como os olmecas, toltecas, teotihuacanos, zapotecas, os maias e os astecas. Com a chegada dos conquistadores espanhóis, em 1520, pelas mãos do conquistador Hernán Cortés, o México assistiu a uma transformação social e cultural que ainda hoje deixa marcas e que resulta numa mistura cultural e religiosa dos hábitos mexicanos.

Duas das mais importantes expressões culturais, fruto da miscelanização das culturas, tradições musicais, religiões e superstições indígenas com as europeias são o “Dia de Muertos” e a música “Mariachi”.

Se é verdade que tanto em Portugal como no México o dia 2 de novembro representa uma romaria aos cemitérios para lembrar os entes queridos que já partiram, a manifestação cultural preconizada pela tradição mexicana do “Dia de Muertos” difere em muito da visão que temos desta data: se os portugueses remetem-se ao pesar e ao luto, os mexicanos fazem da memória daqueles que partiram um hino colorido à vida. Por essa razão a tradição do “Dia de Muertos” acontece ao longo de três dias, entre o dia 31 de outubro e o dia 2 de novembro.

De todo não é uma ocasião sombria ou mórbida, mas sim um feriado festivo e colorido que celebra a vida daqueles que morreram.

Dia dos Mortos celebração

Os mexicanos visitam os cemitérios, decoram as sepulturas com flores de calêndula (os mexicanos chamam-lhes “cempasúchil”), passando algum tempo na presença de seus amigos e familiares falecidos. Mas é em casa e na rua que muita desta tradição encontra o seu lugar: colocam velas e pétalas de calêndulas e outras flores pelos caminhos para conduzirem os espíritos às suas antigas moradas e edificam altares elaboradamente decorados, chamados de “ofrendas”. São o símbolo maior do Dia de Muertos. Apesar das iconografias de santos estarem igualmente presentes as oferendas não são altares de adoração, em vez disso são espaços de homenagem aos antepassados, em que as gerações de agora colocam fotografias de família, os objetos que adoravam em vida e onde não falta inclusive a confeção dos pratos que na época os falecidos pais, tios ou avós mais apreciavam, nem água ou vinho para matarem a sede da longa jornada do além para o mundo material.

Às crianças falecidas (chamadas de angelitos) são erigidas oferendas especiais, ornamentadas com pequenos cestos, carregados com folhas de sapoti (zapote, em espanhol), maçãs, laranjas, pão de estrela e pães de “coelho”, onde não faltam os brinquedos que marcaram a curta infância.

Tal é o impacto desta forma de acudir à lembrança dos que já cá não se encontram na sociedade mexicana que esta tradição já galgou fronteiras e para onde um mexicano vai, a tradição do “Dia de Muertos” vai também. Atualmente vários países da América Latina adotaram também esta festividade, contudo em tempos mais recentes e a forte comunidade mexicana residente nos Estados Unidos celebra esta data com procissões, gastronomia e música, a que se alia também um imenso fervor religioso.

E se a forma mexicana de festejar a eternidade remetia-se até há bem pouco tempo ao país do “sombrero” e dos mariachis, crescentemente esta tradição tornou-se universalmente conhecida graças ao filme de animação “Coco”, realizado pelos estúdios da Disney Pixar em 2017 e vencedor de dois Óscares.

Assista a uma pequena parte do filme de animação Coco | Lembra-te de Mim

Mas como surgiu esta visão peculiar de recordar os que já cá não estão?

Em tempos pré-hispânicos, os mortos eram enterrados perto de casas de família (muitas vezes túmulos sob o pátio central das casas), havendo grande ênfase na manutenção de laços com os ancestrais falecidos, que acreditavam continuar a existir, desta feita num plano diferente. Para a antiga Mesoamérica, a morte não tinha, obviamente, as conotações morais da religião cristã transmitida pelos espanhóis.

Anasazis, olmecas, aztecas e maias (nem a poderosa civilização andina dos incas) não conheciam as ideias de inferno e paraíso, danação ou salvação. Pelo contrário, acreditavam que os cursos destinados às almas dos mortos eram determinados pelo tipo de morte que tinham, e não pelo comportamento que tiveram em vida. Estes povos desenvolveram ao longo dos séculos ricos costumes de natureza simbólica e ritualística sobre o culto aos seus antepassados e da própria morte, antecessora do Dia atual dos Mortos, e que ainda sobrevive, parcialmente, na visão do mundo de muitos mexicanos.

La Catrina México

O festival que se tornou o Dia dos Mortos era comemorado no nono mês do calendário solar asteca, por volta do início de agosto, e era celebrado por um mês completo. As festividades eram presididas pela deusa Mictecacíhuatl, conhecida como a "Dama da Morte", esposa de Mictlantecuhtli, senhor do reino dos mortos, cuja iconografia se encontra intimamente ligada à figura da “Calavera” Catrina, personagem criada pelo José Guadalupe Posada, artista e litógrafo (uma espécie de “Rafael Bordalo Pinheiro” mexicano) e eternizada no painel do pintor (e marido de Frida Khalo) Diego Rivera intitulado “Sueño de Una Tarde Dominical en la Alameda Central”, obra de 1947 que retrata as 100 personagens emblemáticas dos mais de quatro séculos de história do México.

No contexto cultural do continente americano, a celebração da atual tradição anglo-saxónica do Halloween, o Dia de Muertos é uma festividade onde a alegria impera, contudo com uma forte componente cristã, assente em traços que denotam a ancestralidade dos povos que habitaram o México pré-colombiano, com enormes cortejo alegóricos pelas principais ruas das mais importantes e populosas cidades, com uma apaixonada exultação da memória daqueles que já não se encontram no mundo dos vivos, uma manifestação tão poderosa mas ao mesmo tempo tão icónica da cultura mexicana que valeu a distinção desta tradição por parte da UNESCO de a classificar como património universal intangível da Humanidade em 2008 e que a literatura soube retratar ao longo do tempo, como comprova o seguinte poema originalmente escrito em língua náhualtl:

A veces el colibrí, a veces el cuervo,
a veces el tecolote, nos dice cuándo hemos de irnos.
Pero nosotros los mexica no morimos,
sólo cambiamos de casa, de cuerpo.
Y cada año venimos aquí.

 

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