Entre Sombras e Luzes: da Guerra à Paz

Entre Sombras e Luzes: da Guerra à Paz

Analisar o fenómeno do comportamento humano reveste-se de uma complexidade que não é tarefa fácil. Somos contraditórios, paradoxais, convivemos com o bem e com o mal, somos capazes dos atos mais elevados e altruístas, assim como dos mais baixos, perversos e cruéis, como no caso das guerras que testemunhamos.

Ser humano, ainda é, e será uma grande incógnita que se reveste de perplexidades e mistérios.

Procuramos ansiosamente por respostas que deem conta do fenómeno humano, mas esquecemo-nos recorrentemente que na ânsia das respostas ignoramos as perguntas essenciais. Uma boa pergunta, inquieta, e por isso orienta o caminho da resposta. A pergunta revestida de verdade expõe a facticidade dos acontecimentos. Ela despe a realidade, desarruma a rigidez colocando em questão a nossa humanidade.

No entanto ao longo da história da evolução humana, têm sido várias as tentativas de compreensão e de ampliação de sentido para aquilo que é o "acontecer humano", para aquilo que é a experiência de estar vivo e coexistir com os outros. Entre essas tentativas, aparece com força desde a aurora dos tempos o relato mítico, que poderíamos chamar de uma psicologia dos primórdios.

Costumo dizer que os mitos são projeções do íntimo, das profundezas inconscientes que habitam o ser humano e que este projeta na tela do mundo, do seu mundo.

Ele projeta todas as suas paixões, emoções, sentimentos e afetos que ganham desse modo um colorido multifacetado permeado por uma imaginação mítica, estando esta repleta de singularidades e com rosto universal. Os mitos contêm toda a humanidade, são universais, atemporais, apontando quase sempre para as origens. As origens de tudo aquilo que é, e de tudo aquilo que contem o fenómeno humano.

A mitologia não deve ser encarada como uma fantasia ou inverdade, aqui tratamos da matéria que forja o mais íntimo do ser humano. Falar de mitologia é falar de psicologia, pois esta reflete a riqueza e diversidade do psiquismo humano. Aquilo que os seres humanos têm em comum revela-se no mito.

Segundo Joseph Campbell os mitos são histórias da nossa vida, da nossa busca da verdade, da procura do sentido de estarmos vivos. Os mitos são pistas para as potencialidades espirituais da vida humana, daquilo que somos capazes de conhecer e experimentar interiormente.

O mito é o relato da experiência da vida. Eles ensinam que podemos voltar-nos para dentro. Assim sendo os mitos têm como tema principal e fundamental a busca da espiritualidade interior em cada um de nós.

Estará o leitor neste momento a questionar-se, sobre o porquê de estarmos a falar de mitos, quando o mote deste artigo é sobre a guerra e a paz, se assim for, seja paciente, já lá vamos.

A origem dos mitos perde-se na noite dos tempos, sem que ninguém possa dizer de onde vieram. São narrativas fascinantes, porém absurdas (além da compreensão) para quem quiser neles observar algo palpável e "real". E não adianta procurar-lhes verdades científicas ou mesmo, quem tentar fazê-lo perderá toda a sua beleza e fascínio, além de desperdiçar o seu tempo (Viktor Salis) Mas se são absurdas fantasias, para que servem então? Para levar-nos para longe da realidade e embalar-nos em impossibilidades? 

E ainda assim ficamos por eles apaixonados e maravilhados. Falam de coisas que nos dizem respeito e parecem responder a tantas e tantas perguntas que temos sobre o mistério e o absurdo da existência e da vida. Parece que quando conhecemos um mito, "já o sabíamos sem o saber", por vezes soa-nos tão familiar e, principalmente toca-nos o coração, que se o nosso realismo permitir e não exigir que o descartemos como tolice ou simples mentira (Viktor Salis), aí sim, podemos dele beneficiar. 

Na Antiguidade, longe de serem conotados como algo falso, os mitos eram considerados a linguagem que os deuses utilizavam para nos ensinar a arte de viver e de amar e assim deles nos aproximarmos.

Eram narrativas fantásticas e ambíguas porque os deuses nunca comunicam de forma direta (Viktor Salis).

Para Viktor de Salis, psicólogo e mitólogo de origem grega, esta é a beleza dos mitos que tanto nos fascina e apaixona: eles não preveem, mas abrem portas e possibilidades para a nossa vida. Por isso são fantásticos e ambíguos; exigem a nossa participação e uma tomada de posição, enfim, exigem-nos a coragem para viver, não para permanecer na apatia ou na indiferença. 

Assim, cada um tem o desafio de recriar um mito - qualquer mito - para a sua própria vida de acordo com sua visão e compreensão. Ontem como hoje, eles desempenham o papel “de oráculos e videntes” da nossa intimidade (Viktor de Salis).

Joseph Campbell, um dos maiores mitólogos de todos os tempos, afirmava sabiamente – “a mitologia é como o sonho. Os mitos são sonhos públicos e os sonhos são mitos privados”. Esta afirmação é deveras esclarecedora acerca da riqueza do tema que nos propomos abordar.

Voltando ao nosso tema, Guerra e Paz, e de como o tema foi tratado na antiguidade. Neste caso pela Grécia Clássica. Teremos que ser breves, embora possamos retomar o tema dos mitos e da necessidade de com eles aprender em futuros artigos. 

Os Gregos possuíam um deus para a guerra, Ares, e um conjunto de deidades que poderemos incluir como sendo atributos da paz, nomeadamente, Afrodite e Atena, deusa do amor e a deusa guerreira da sabedoria.

Ares ou Marte para os romanos, é o terrível deus da guerra, ele é um dos filhos de Zeus e Hera. No campo de batalha pode matar um mortal apenas com seu grito de guerra! Era considerado o patrono de vários heróis – humanos que são protegidos ou filhos de deuses. No entanto Ares possui uma particularidade inusitada, o deus da guerra, apaixonou-se e foi um dos amantes de Afrodite (Vénus, a deusa do amor). Este aspeto relembra-nos que só pelo Amor e no Amor é que a guerra pode parar. 
Ares era bárbaro e desprovido de cultura, era cruel, pois destruía todos aqueles que se opusessem ao seu caminho. Ares era impulsivo ao extremo, ele não continha os seus instintos brutais, não poupando desse modo ninguém dos seus ímpetos.

Era “corajoso”, enfrentava todos os seus inimigos com uma inabalável convicção da vitória, e comandava os seus exércitos com pulso e direção. Porém, sua habitual precipitação, fruto da impulsividade, quase sempre lhe tirava a vitória certa. Ares-Marte apreciava a destruição, e a tinha como uma espécie de diversão. Tinha como companheiras deidades tão terríveis quanto ele: Fobos (o Medo), Deimos (o Terror), Éris (a Discórdia). Concordarão que esta narrativa mítica está muito próxima de algumas realidades que vivemos e testemunhamos na atualidade.

Por sua vez os Gregos apresentam-nos outra deidade guerreira, Atena, Minerva para os romanos, a deusa da Sabedoria, que como referimos também era uma deusa guerreira, porém as suas características eram opostas às de Ares-Marte: enquanto Ares-Marte era impulsivo, Atena-Minerva conduzia as suas batalhas pela estratégia e inteligência. Ela representa a verdadeira luta, a luta interior, que procura a transformação e a elevação das suas maiores e melhores potencialidades, e não a destruição interior e exterior. A deusa já nasceu armada e pronta para lutar pelos seus ideais! 

Deste modo, imbuído pelo espírito de Atena que a nossa luta seja pela paz, pela fraternidade e pela concórdia entre as pessoas e seus povos.


Sugestões de leitura |
Campbell, J., Moyers, B. (2020). O Poder dos Mitos. Lua de Papel.
Salis, V. D. (2018). Mitologia viva: aprendendo com os deuses a arte de viver e amar. Editora Nova Alexandria.
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