A Saúde e o Mental
Saúde há só uma, é toda e por inteiro. Ela inclui o ser humano na sua unidade e totalidade. Ainda que possua várias dimensões, a física, a psíquica, a biológica, a social e a espiritual, apenas ganha sentido integrador na sua totalidade.
A saúde desenrola-se num processo complexo, dinâmico e dialético de equilíbrio instável devido a uma quantidade enorme de fatores e variáveis nos quais está implicada. Paradoxalmente não existe saúde sem doença, o mesmo é dizer que saúde e doença fazem parte de uma mesma roda de vida.
Hoje falaremos de uma das suas dimensões, a psíquica e mental, ainda que uma parte, o seu estado reflete holograficamente o todo que compõe a saúde humana.
Será o nosso ponto de partida para a reflexão sobre o sofrimento psíquico o conceito de saúde mental proposto por um dos mais renomeados médicos e psicanalistas ingleses que viveu entre 1896 e 1971, Donald Woods Winnicott.
Winnicott concebe saúde mental do seguinte modo:
“Saúde mental é capacidade de produzir (ação) e fruir a vida de acordo com as condições existentes numa dada ocasião.”
Trata-se de um conceito aparentemente simples, altamente inovador, humanizante e inclusivo que nos chama a atenção para uma das dimensões mais relevantes dentro da psicologia da saúde, a possibilidade de se poder ter saúde na doença.
Winnicott basicamente nos diz que se formos capazes de produzir, ou seja agir, e fruir, gozar a vida de acordo com as condições existentes numa dada ocasião podemos afirmar que possuímos saúde. É o mesmo que dizer que um forte núcleo de saúde está ativo em nós. Quando assim é, mostramo-nos capazes de ir além das condicionantes que a vida nos traz.
Como costumo afirmar, as condicionantes sejam elas psíquicas, físicas, sociais ou económicas não são a nossa condição de sermos humanos. Quando se prossegue o rumo da saúde, apesar das vicissitudes, a pessoa não fica aquém, é capaz de ir além, de se transcender perante os desafios da sua existência. No entanto este caminho não é um caminho que se faz sozinho, apenas na relação com outro, em comunidade e sociedade é que melhor percorreremos os caminhos da saúde. A saúde em projeto, trata-se de um projeto de todos e para todos, pelo menos assim deveria ser.
Voltemos a Winnicott, o próprio colocou em prática a sua teoria e conceção, pois numa fase avançada de vida sofreu de graves problemas cardíacos que não o impediram de continuar a produzir e a fruir da vida tal como ela se apresentava. Ele próprio afirmava enigmaticamente e com o celebre humor inglês, bem presente nas suas características de personalidade, “ó Deus que eu esteja vivo na hora da minha morte”.
Aqui lembramo-nos de Leonardo Boff quando afirma que “Saúde não é a ausência de danos. Saúde é a força de viver com esses danos”. Em suma, saúde e doença fazem parte da mesma roda de vida.
Nesta perspetiva a saúde, ainda que parcial, é sempre encarada como um recurso de e para a vida.
No que concerne à saúde mental, ou às suas vulnerabilidades quando ela, a saúde, se apresenta frágil, o que sabemos é que os sinais e sintomas se apresentam como resultado de um mal-estar que se manifesta na interação da pessoa consigo, com o outro ou com o mundo.
No campo da saúde mental não existe adoecimento fora da relação inter-humana, os vínculos, nomeadamente a qualidade deles está sempre implícita, o que quer dizer que o sofrimento psíquico se manifesta essencialmente no plano das relações humanas, nos laços afetivos que possuímos e estabelecemos.
Neste sentido a doença mental, o sofrimento psíquico e a perturbação emocional têm uma dimensão universal o que quer dizer que são indiferentes à cultura, ao estatuto socioeconómico, ao contexto histórico e geográfico.
Além de universais são indesejáveis – a experiência de sofrimento, o desejo de obter ajuda, na medida em que induz limitações, altera a perceção de si próprio e/ou da realidade. Este sofrimento pode ocorrer a dois níveis: intrapsíquico e interpessoal (a dimensão relacional é fundamental – não há Psicopatologia, sofrimento psíquico fora da relação).
Neste contexto, conceitos como o de normalidade, de desvio, de fora da norma - “anormal”, ainda estão implicitamente presentes, quando o que se apresenta e manifesta são essencialmente pessoas que sofrem e não doenças ou patologias.
O que na realidade é importante neste campo é irmos percebendo que tal como defendia José Ângelo Gaiarsa “o normal não é ser bem equilibrado. Normal é ser um bom equilibrista”
Mas o que é saudável e patológico do ponto de vista psíquico?
A ideia que temos de pessoa psicologicamente saudável (ou que está no seu estado normal e integrado) é toda a pessoa que está bem consigo e com os outros. Que não se paralisa interiormente nos seus conflitos. Pelo contrário, a pessoa psicologicamente doente (psicopatológico) transporta em si fixações conflituais onde as dificuldades internas e externas aparecem como superiores ao seu equipamento afetivo, defensivo e adaptativo.
Saúde no campo mental e psíquico relaciona-se com a capacidade de...
► Manter equilíbrio e integração das forças psíquicas com a autoperceção como unidade coerente;
► A perceção da realidade adequada;
► A capacidade de autorrealização;
► A resistência e adaptação à frustração;
► O confronto ativo com o stress;
► A autonomia;
► O possuir competências comunicacionais;
► A experiência e acesso à liberdade de ser e vir a ser;
► O poder desenvolver o seu projeto existencial.
Perante o exposto, como promover a saúde mental? De acordo com a visão mais recente, para se alcançar um melhor nível de saúde não basta apenas estimular e/ou induzir os indivíduos a adotarem condutas saudáveis, sem considerar o contexto social, político, económico e cultural no qual estão inseridos.
Como tão sabiamente afirmava o médico e psicanalista argentino Enrique Pichon-Rivière, referência mundial no campo da psicologia social clínica e crítica: “a luta pela saúde não é apenas a luta contra a doença, mas contra os fatores que a originam e reforçam.” Pois tal como sabemos é o meio, individual, familiar, social e económico que gera ou favorece o adoecimento, assim como o que facilita ou dificulta a prevenção, o controlo e/ou a cura das doenças.
Neste sentido, políticas públicas saudáveis e a criação de ambientes favoráveis à saúde como no caso a promoção de uma saúde mental e emocional saudável são dimensões fundamentais da responsabilidade social da saúde. Isto significa que a saúde não deve encerrar-se nas ações do próprio setor, mas envolver todas as áreas, governamentais ou não, cujas ações repercutam na saúde e qualidade de vida da população.
Uma vez que a saúde é essencialmente, e também no campo mental, a promoção de condições de vida dignas, boas condições de trabalho, educação, cultura física e formas de lazer e descanso. O instrumento para conseguir o acesso da população a essas condições de vida é a “Promoção da Saúde” nas suas várias esferas de atuação.
Para finalizar, que seja a saúde uma das nossas prioridades enquanto pessoas e enquanto sociedade, pois só desse modo é que evoluímos no sentido de um bem-estar comum, de um cuidado de si, de um cuidado do outro e de um cuidado do mundo.
No campo das relações humanas este cuidado e atenção para com a saúde mental deve ter em conta oito pilares de sustentação, nada de muito sofisticado ou distante, ora vejamos: Ver; Ouvir; Falar; Tocar; Sentir; Caminhar (mover); Brincar; Amar. Estes são os ingredientes que nos sustentam, são a base da humanidade que somos e que ampliamos quando os aplicamos na quotidianidade dos afetos que trocamos entre uns e outros.
Afinal os recursos estão bem mais próximos do que poderíamos imaginar. Cuidemo-nos.
Sugestões de leitura |
Boff, L. (2017). Saber cuidar: ética do humano-compaixão pela terra. Editora Vozes Limitada.
Honoré, B. (2002). A saúde em projecto. Lusociência.
Mello Filho, j. (2008). O Ser e o Viver: uma visão da obra de Winnicott. Casa do Psicólogo.
Texto e Fotografia | Vítor Fragoso - Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta
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