Novo dia: Urge Renovar aquilo que o Tempo Gastou
Novo dia: Urge Renovar aquilo que o Tempo Gastou

Novo dia: Urge Renovar aquilo que o Tempo Gastou

O Noruz*1  (dia novo) – o Ano Novo persa – comemora o dia em que teve lugar a Criação do Mundo e do Homem. De acordo com o historiador árabe Alb’runi era no dia do Noruz que se efetuava a “renovação da Criação”. No dia novo, o rei proclamava: “eis um novo dia, de um novo mês e de um novo ano: é preciso renovar o que o tempo gastou.” O tempo gastara o ser humano, a sociedade, o cosmos, e esse tempo necessita de ser renovado.

Desde da antiguidade que o Ano e o seu ciclo são representados por um círculo fechado. Esse símbolo, despertava no Homem a ideia (imago) de que o Ano tinha um começo e um fim, mas possuía também a particularidade de poder “renascer” sob a forma de um Ano Novo.

Desde da aurora dos tempos, e uma vez tocado pelo assombro dos fenómenos naturais, o Homem foi percebendo o transcurso dos ciclos da Terra e o que estes representavam para si pelo íntimo impacto que lhe despertavam. O contacto com a misteriosidade (Jaime Milheiro) da vida proporcionava a descoberta e o espanto da experiência de estar vivo, seja pela experiência da mudança das estações do Ano, com as suas diferentes e renovadas matizes, seja pela observação da renovação em curso que o passar dos dias, das semanas, dos meses, e por fim dos anos lhe provocavam em intensos sentires e pensares.

A vivência deste íntimo tempo, que não é um tempo qualquer, pois é um tempo “kairós”, representado pelos gregos como aquele tempo que se fez humano pela necessidade de vivê-lo oportunamente. Este é o tempo sentido e que amplia o sentido, é o tempo que se inscreve na memória do corpo e da mente, e por essa via, como memória afetiva, é um tempo que se constituiu em historicidade. É uma história viva, um tempo atravessado pelo passado, presente e futuro. 

É um tempo que ganhou essa forma (historicidade), quando o Homem procurou “agarrar o tempo” e ao “capturá-lo” nele inscrever a sua narrativa vivida, prenha de afetos, de emoções, sentimentos e memórias vivas que desse modo passam a ser a história contada por todos e cada um. Passam a ser uma história que se quer partilhada.

Uma história coletiva e individual que desde o início dos tempos da humanidade era transmitida pela fala, como legado oral, como património íntimo da humanidade, como reflexo da convivência humana que passava de geração em geração. 

Somos Homens que falam, contadores de histórias, constituídos pelas narrativas que criamos. É esta a singularidade de ser humano, ser aquele que fala, aquele que conta, e que se conta, aquele que necessita de um outro para que a sua história ganhe escuta, abrigo, lugar e sentido(s).  Não se trata de um outro qualquer, mas de um outro que se mostra recetivo e aberto ao encontro mútuo, uma vez que só no e pelo encontro verdadeiramente humano nos abrigamos da angústia que nos constitui e que por essa via (o encontro) nos humanizamos, transformamos e expandimos em saúde.

E assim vamos a cada ano, um ano novo que desejamos que seja verdadeiramente novo, renascido, porque nunca vivido, isto, apesar dos perigos da repetição. Da compulsão à repetição como defendia o velho mestre Sigmund Freud. 

Afirmava Freud que para não repetir há que lembrar, há que recordar aquilo que nos impele à reprodução de padrões de comportamento, de pensamento e do sentir, já gastos, porque fora do tempo oportuno, porque fora do lugar. São padrões que estão “fora de prazo”, incompletos e saturados. 
Não se trata de uma lembrança qualquer, mas de uma lembrança que se faz recordação, e que, quando acolhida em nova e renovada relação, transforma-se, expande-se e ajusta-se criativamente ao quotidiano vivido, porque este não repete o modelo e acolhe a novidade do existir presente. 

Esta abertura ao novo, do aqui (corpo) e do agora (presente), é o que Jacob Levy Moreno, o pai do Psicodrama designou de estado nascente. Trata-se de um poder viver em estado nascente, ou seja, para uma situação velha, uma nova resposta, para uma situação nova, também a novidade do sentir, do pensar, e do agir. 

Viver em estado nascente possui como condição a abertura ao que em nós existe de espontaneidade e que em livre fluxo se traduz muitas das vezes em realização criativa. Viver em estado nascente possibilita o surgimento de novas e renovadas respostas às perguntas da vida, assim como a ampliação do reportório comportamental humano que desse modo lhe permite dar seguimento ao inacabado, encontrar um desenlace criativo e renovado para as situações inacabadas. 

Em suma, que este "términus" que se avizinha seja um impulso para o novo que se anuncia em nós e que quer desabrochar.

Por fim, desejo um feliz dia novo em cada dia do nosso quotidiano, para que este seja feito de um tempo existencial insaturado, renovado e fluído. Que assim seja.

*1 Noruz (em pársi نوروز; também transliterado como Nowroz, Noe - Rooz, Norooz, Novruz, Noh Ruz, Nav-roze, Navroz ou Náw-Rúz; em português: 'Dia Novo') é uma festa tradicional da Ásia Central que celebra o Ano Novo do calendário persa - marcando a renovação da natureza (primeiro dia da primavera). O Noruz pode acontecer no dia 20, 21 ou 22 de março do calendário Gregoriano, a depender do momento (dia e hora exata) em que ocorra o equinócio de primavera. | Fonte

Sugestão de Leitura |

Eliade, M. (2006). O Sagrado e o profano, a essência das religiões. Lisboa: Livros do Brasil.

Texto e Fotografia (capa) | Vítor Fragoso - Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta

Ver também | 
Nascimentos e Transições
Assédio Moral no local de trabalho
A vida e os seus sentidos
Viver com a ansiedade