
O Impacto dos Nascimentos e Transições
Nascimentos e Transições
Estamos numa quadra em que festejamos um nascimento e depois uma passagem, com a transição para um novo ano. Não é um nascimento qualquer, é o nascimento de Deus encarnado no menino Jesus, isto para os crentes. Mas, sejamos crentes ou não, esta imagem, este símbolo de um filho prometido que nasce no seio de uma família com pai e mãe unidos, e com toda uma comunidade que o espera (representada pelos reis magos), não deixa de ter um grande impacto em nós, queiramos ou não.
O menino é um novo ser que vem em promessa e envolto numa aura divina. Este é recebido com assombro, devoção e com amor pelos seus pais. Do ponto de vista psicológico esta imagem representa uma grande mensagem: a de um filho que é adotado pelo pai, gerado pela mãe e amado pelos dois.
Este é o desejo de todos nós, defendia Carlos Amaral Dias, nascer e ser recebido pelo amor dos pais e de uma comunidade.
O nascimento é algo que transporta vários símbolos, para além da separação, o “trauma do nascimento”, pela mudança de meio ambiente, para não falar de tudo o resto que pode ocorrer, ele representa mais do que tudo o início de uma vida que se apresenta.
O nascimento representa a novidade que aquele novo ser traz ao mundo, no fundo, o neonato é uma promessa de caminho a ser percorrido. Um caminho único, singular, mas que se espera bem aconchegado pelo amor dos seus pais em primeiro, depois pela comunidade e sociedade na qual nasce.
Nascer é “dar à luz”, realizar o parto após a conceção e a sua gestação.
Nesta luminosidade que todo o nascimento acarreta, não deixa de ser curioso as analogias que fazemos na linguagem comum, entre o nascimento e o pensamento, quando saudável e insaturado, ora veja-se: “fez-se luz”, “na minha conceção”, “abrir a cabeça”, ou o famoso “parto das ideias” da maiêutica socrática.
Ao nascer, menino ou menina, vivem o seu momento natural por excelência, aqui dá-se o primeiro nascimento.
Para logo de seguida, se dar o segundo grande nascimento entre muitos outros que este neonato terá por toda a sua vida, este segundo nascimento é o da cultura, pois o bebé é acolhido, vestido e ritualizado de acordo com os costumes e tradições da cultura em que está inserido para logo de seguida se dar a formalização de um novo nascimento, o da identidade, ou do início de uma identidade que passa a estar registada com a atribuição do nome, passa a ser o João ou a Josefa.
Este nascimento pelo nome inserido na cultura e soletrado pela língua materna e paterna, é um nascimento que em boa verdade pode ter começado antes, nomeadamente, ainda nascituro, através da gestação interna realizada no imaginário dos seus pais, que muitas das vezes já o nomeavam ainda que no ventre materno.
Após o grande início por aí seguimos pela rota de todos os nascimentos que teremos pela vida, pois tal como defendia Erich Fromm, “Viver é nascer a cada instante”, o que pressupõe também uma morte (simbólica), e assim podemos dizer com Freud, “é preciso nascer e morrer todos os dias”. Quando assim é a vida flui. Ela segue o seu curso com naturalidade, sem esforço, sem violência.
Além de aniversários, nesta quadra também celebramos uma passagem – a passagem do ano. Jano já olha o passado, sem deixar de olhar para o futuro, estamos na passagem de ano já com a vizinhança de janeiro, mês que ganha o seu nome precisamente através do deus Jano (divindade romana). Jano é o deus da transição, aquele que abre portas, aquele que sabe olhar o passado sem deixar de olhar o presente.
O ano está a findar, aproximasse um novo ano nunca vivido, também ele uma promessa e em estado nascente. Segundo Mircea Eliade, iminente antropólogo romeno, em várias línguas das populações aborígenes da América do Norte, o termo “Mundo” (= Cosmos) é igualmente utilizado no sentido de “Ano”.
Os Vokut dizem “o mundo passou”, para exprimir que “um ano passou”. Para os Vuki, o “Ano” é designado pelos vocábulos “Terra” ou “Mundo”. Como os Vokut, eles dizem “a terra passou”, no sentido de que se passou um ano. O vocabulário revela a correspondência religiosa entre o Mundo e o Tempo cósmico.
O Cosmos é concebido como uma unidade viva que nasce, desenvolve-se e extingue-se no último dia do Ano, para renascer no dia do Ano Novo. Veremos que esse renascimento é um nascimento, que o Cosmos renasce todos os anos porque, a cada Ano Novo, o Tempo começa “ab initio”*1.
Segundo Eliade para o homem religioso das culturas arcaicas, o Mundo renova-se anualmente, isto é, reencontra a cada novo ano a santidade original, tal como quando saiu das mãos do Criador.
O Ano era representado por um círculo fechado, tinha um começo e um fim, mas possuía também a particularidade de poder “renascer” sob a forma de um Ano Novo.
A cada Ano Novo, um Tempo “novo”, “puro” e “santo” – porque ainda não usado – vinha à existência. O círculo representa eternidade, perfeição e divindade pois não tem princípio nem fim. Desta forma percebemos a sua proximidade com Deus, motivo pelo qual é usado em muitas religiões. O círculo também representava o “eterno retorno”, o fim de um ano e o início de outro, a “Roda Solar” (ou Roda do Ano), na qual se contavam solstícios e luas para marcar os anos.
Hoje ficamos pela Roda Solar com a promessa de continuidade para breve. Finalizo desejando um feliz nascimento para todos.
Sugestão de leitura |
Eliade, M. (2001). O sagrado e o profano. A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes.
Eliade, M. (2002). Imagens e símbolos. Ensaio sobre o simbolismo mágico-religioso. São Paulo: Martins Fontes.
*1 "ab initio" - Desde o princípio, desde o começo; desde que o mundo é mundo.
Texto | Vítor Fragoso - Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta
Fotografia | Fonte - Mitologia Guru