O Tempo e a Vida Plena

O Tempo e a Vida Plena

Somos Contadores de Histórias...

A vida humana na sua unidade e totalidade faz-se plena a cada etapa que passa. Podemos ficar aquém do que nos era possível para as condições que nos são dadas, mas a possibilidade de plenitude está lá.

Aos leitores que me vão lendo, imagino que por vezes fiquem baralhados no labirinto de palavras que uso para descrever a existência humana, como seja, agora o caso do uso da palavra plenitude, no entanto, apenas exponho o que observo, escuto e experimento na realização do meu ofício, o de ser psicólogo e psicoterapeuta.

Neste ofício que tem como principais ferramentas o acolhimento e a escuta, o que se apresenta é uma realidade labiríntica a ser percorrida pela dupla terapêutica através do diálogo e encontro que uma vez possíveis e vivenciados vão desvelando o mapa do labirinto, encontrando novas possibilidades de destino para desejos, emoções e sentimentos que se encontravam sem saída e sem uma história que os componha e destine.

Regressando ao labirinto das palavras. No trato das questões humanas muitas vezes utilizamos as palavras como absolutos, e elas são, mais do que tudo, relativas. Relativas à experiência e vida concreta dos humanos. Neste sentido a plenitude parece ser uma daquelas que só se aplicaria a algo maior, superior, final. Nada mais errado!

Pleno é apenas o máximo humanamente possível para aquela pessoa, grupo ou família que num dado momento e etapa do seu percurso de vida conseguiu atingir o seu ápice sem resistências de maior que a impedissem de prosseguir no sentido da coerência de si e da presença consciente do seu momento existencial.

E no correr da vida apresenta-se como necessário poder superar as vicissitudes e possuir a capacidade de viver com dignidade e liberdade para poder vir a ser plenamente humano com tudo o que lhe coube e caberá, ou seja, com alegrias e tristezas, prazeres e dores. O que não quer dizer que se chegue a essa experiência de inteireza facilmente, mas sim que há a possibilidade de poder fazer esse caminho conjunto, o de nos tornarmos mais humanos uns com os outros.

Neste sentido e pensando no envelhecimento e velhice, esta plenitude prende-se antes de mais com o caminho sempre aberto para novas e renovadas aprendizagens. Tenhamos nós, enquanto sociedade, a humanidade e a capacidade de tudo fazermos para que os nossos idosos e idosas assim o possam realizar.

Envelhecimento e velhice desafiam-nos na realização de aprendizagens e adaptações constantes. O ser humano precisa do tempo, uma vez que precisa de envelhecer para saber quem foi e o que é.

O envelhecimento envolve uma multiplicidade de mudanças e descontinuidades que desafiam a construção do EU e nesta construção de identidades a Biografia Pessoal tem como centro a autorrepresentação do próprio, é dizer, a ideia que cada um tem de si, apresentando-se esta como fulcral e desafiante no percurso do caminho para alcançar a plenitude possível seja ela individual ou coletiva.

No caminho que é vida de uns e de outros, a ideia que cada um tem de si, é uma ideia que tem continuidade. O que faz com que a biografia pessoal comporte orientação prospetiva, não sendo meramente retrospetiva.

Somos contadores de histórias. Nas sociedades mais arcaicas a história era comum, todos participavam e faziam parte da narrativa, pois esta detinha um poder identitário forte.

Este encontro feito diálogo entre pessoas, de pessoa a pessoa, era possuidor de uma “aura mágica” quase magnética, escutar e ser escutado com a possibilidade de reconhecimento mútuo era e é vital para Homens (Birman, 2015).

Reconhecer-se e ser reconhecido sempre exerceu um enorme poder sobre os seres humanos. A possibilidade e realização de um encontro entre pessoas é decisivo para a humanização e realização do Homem (Homem = húmus, terra fértil).

Sem este encontro que se faz diálogo de contrários (que se complementam) não existe humanidade viável.

Pensemos no caso do isolamento psíquico e relacional que muitos idosos padecem e que se agravou com a pandemia. Sabemos que para muitos e muitas o distanciamento que protege, tornou-se em isolamento, ou já o era, e com a pandemia agravou-se escandalosamente.

Na atualidade para muitas famílias este distanciamento virado isolamento está a ser terrível com consequências danosas para todos. O desnorte é grande, e urge cuidar.

Quando alguém se sente isolado, quando não encontra sentido para a vida, sente urgência em encontrar um som, um ritmo, uma palavra que o liguem de novo a ela (à vida), necessita de algo que o faça sentir-se acompanhado e seguro, e é precisamente isso que está em falta.

Neste estado de isolamento, a palavra exerce o seu caráter de invocação, ela vincula, une, estabelece pontes na memória pela partilha de histórias de vida, e desse modo ela ganha a sua função estruturante de integração de vivências, de possibilidade de encontro inter-humano.

Desta constatação surge a necessidade de melhor trabalharmos a autobiografia pessoal, neste contexto os psicólogos e as psicólogas destacam-se pela sua formação, pelo seu conhecimento e prática, uma vez que no exercício do seu ofício apresentam-se como base para o acolhimento e como plataforma de possibilidade para novos e renovados caminhos no percurso da vida das pessoas que “alojam”.

Cuidar da biografia pessoal possibilita ter contacto e trabalhar com autobiografia do passado que serve de acesso à autobiografia do presente.

Demetrio, 1995

Este trabalho e ofício, o de ser psicólogo e psicoterapeuta, apresenta-se como a “arte de restaurar histórias”. Aqui é importante recordar que ao trabalharmos a biografia das pessoas, em especial a dos mais velhos, o que trabalhamos são essencialmente as suas memórias: as passadas, as presentes e as futuras. Sim, as presentes e futuras também, uma vez que a memória é um lugar de reunião do passado, um encontro no presente e uma visão para o futuro.

Sem memória perdemos a identidade e o senso de inteireza que nos constitui. Neste sentido, falar de nós tem um efeito benéfico e permite ao Narrador sentir-se ao mesmo tempo Autor e Protagonista da sua história.

O trabalho autobiográfico coloca em evidência o quanto ainda existe por fazer. Descobrimos o que ainda falta realizar pelas novas ligações que se apresentam por acaso, entre os milhares de histórias que trazemos à superfície. Através do encontro tornamo-nos “parceiros de vida ajudando-nos a iluminar caminhos e abrir atalhos, emprestando nossos sentimentos e emoções um ao outro, buscando-nos mutuamente” (adaptado de Juliano, 1999).

No caso dos idosos é urgente possibilitar espaços e lugares de escuta e partilha, seja individualmente, seja em grupo, uma vez que a partilha promove o – NÓS –da Relação. Isto consegue-se através do estabelecimento de um forte laço afetivo, de uma nova rede de significados.

No crepúsculo da vida, como tão bem defendia Rubem Alves: “é preciso ter olho novo para ver as coisas velhas de maneira diferente”. Quando assim é, a plenitude de possibilidade torna-se realidade, porque inteira torna-se espaço onde tudo o que é humano tem lugar, pois, tal como dizia o filósofo Terêncio: «sou um Homem, e nada do que é humano me é estranho».

Quando emerge este lugar de abrigo e de encontro entre pessoas a humanidade floresce e prospera, pois vai além da mínima diferença tão presente no comportamento humano atual.

Sugestões de leitura | 

Birman, J. (2015). Terceira idade, subjetivação e biopolítica. História, Ciências, Saúde-Manguinhos, 22, 1267-1282.
Demetrio, D. (1995). Era uma vez…a minha vida! Autobiografia como método terapêutico. Lusociência.
Juliano, J. C. (1999). A arte de restaurar histórias. Summus Editorial.

Texto e Fotografia | Vítor Fragoso - Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta

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