Dispositivos digitais: “estranha forma de vida”

Dispositivos digitais: “estranha forma de vida”

É urgente abrir uma discussão ponderada sobre o desenvolvimento tecnológico em massa e os seus efeitos — os esperados e os inesperados. Atualmente assistimos à implementação de inovações tecnológicas que levantam questões éticas profundas. Numa das principais feiras de tecnologia da Ásia, realizou-se o primeiro teste público de um pivô de notícias robótico comandado por inteligência artificial. Esse pivô foi uma das principais atrações dessa feira.

O que está em questão aqui, não são os benefícios dos avanços tecnológicos, mas os seus limites e o modelo civilizatório que transportam e que anunciam.

Que vida? Que forma? De que modo?

Afirma Benilton Bezerra, Psicanalista brasileiro: “a arquitetura e a dinâmica das tecnologias eletrónicas, que envolvem Big Data, algoritmos e indivíduos produzindo voluntariamente informações sobre si próprios permitem uma nova transparência em que todos somos permanentemente vasculhados, monitorizados, testados, e persuadidos — a realidade da submissão e do controle é travestida de experiência de autonomia e liberdade. Essa seria a característica mais decisiva das transformações na vida social que as tecnologias digitais vêm precipitando” (Bezerra, 2020). Neste campo, é interessante refletir sobre as alterações provocadas pela realidade pandémica. Ao nível dos comportamentos “os corpos” estão mais restritos, mas mais ativos nas plataformas. “No pan-ótico digital não há prisioneiros. O seu elemento fundamental é a ilusão de liberdade” (Bezerra, 2020).

Hoje, e apesar do regresso progressivo à vida anterior, mais livre e solta, assistimos ao que muitos autores apelidam de modo de vida zoom. Como defende Paula Sibília, relevante antropóloga argentina, uma autora e pensadora essencial para melhor compreendermos os tempos atuais, “é importante recordar que as tecnologias não são neutras, elas incitam a adoção de estilos e modos de vida”. Elas trazem incorporados alguns valores e crenças, que supõem, propõem e estimulam certos modos de uso, ou seja, certos modos de vida e não outros – o mundo em rede.

Estas transformações que experimentamos parecem revelar uma modificação na forma como nos relacionamos. Sinais dos tempos?

A utilização crescente, generalizada e banalizada de um número cada vez maior de dispositivos digitais, poderá esconder um enorme buraco daquilo que nos falta, daquilo que nos é essencial para uma vida humana e humanizante, ou seja, relações humanas de qualidade, é dizer: relações humanas, acolhedoras, presentes e verdadeiramente disponíveis.

Jaques Lacan, eminente psicanalista francês, referia-se no século passado às consequências do uso massivo da televisão da seguinte forma: “estes aparelhos muitas vezes ocupam o lugar da falta. Daquilo que falta, da fome. Daquilo que falta na relação”. Afirmação perfeitamente adaptável aos dias atuais perante o modo como utilizamos os dispositivos digitais.

No “modo de vida zoom” ou wi-fi, estamos visíveis e ligados a todo o momento, em qualquer lugar. Vivemos uma hibridez do estar "on" e estar "off". Com isto, surge o perigo de estar ligado a tudo, menos à vida. Emergindo como sintoma desta estranha forma de vida uma enorme fadiga difusa e multicausal.

Viver modo wi-fi – pode provocar Mal-estar. Inegavelmente provoca a diluição do tempo e do espaço, com as consequências psíquicas e comportamentais daí decorrentes, essencialmente a apatia e a alienação. A pessoa está "ON" no digital, mas "OFF" na e para a vida.

O crescente grau de exposição a toda esta panóplia de dispositivos, aplicações e afins gera um conjunto de vulnerabilidades, compatibilidades e incompatibilidades, sinais aos quais devemos estar atentos, sinais que devemos cuidar e prevenir.

Será que o maior acesso à informação e às diferentes possibilidades digitais (do modo em que estão), realmente nos favorece?

Novamente Síbilia auxilia-nos, dizendo o seguinte: “a vida quotidiana (e o eu) é entendida como um espetáculo performático, mas realista, com estética (e lógica) publicitária”.

“Estranha forma de vida”: Que vida? De que forma? De que jeito?

Se esta realidade nos incomoda, cabe-nos inventar o mundo que desejamos e no qual queremos viver.

O desafio continua…urge “planificar a esperança” (Pichon-Rivière).

Sugestões de leitura | 

Bezerra, B. (2020). Tecnologias digitais, subjetividade e psicopatologia: possíveis impactos da pandemia. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 23, 495-508.

Dessal, G. (2020). Inconsciente 3.0: Lo que hacemos con las tecnologías y lo que las tecnologías hacen con nosotros. Xoroi Edicions.

Sibília, P. (2020). O show do eu: a intimidade como espetáculo. Contraponto Editora.

Texto e Fotografia | Vítor Fragoso - Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta

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