Esta Gula que me Destrói o Amor…

Esta Gula que me Destrói o Amor…

Quem é que não gosta deste ou daquele alimento especial – ou até especialíssimo – que nos faz sentir melhores, mais compensados e sobretudo mais felizes? E quem é que, nesta ou naquela ocasião, não abusou dele ou de outros com efeitos semelhantes ou, se calhar, até opostos? Eu, glutão – e mais glutão do que qualquer pessoa sã –, me reconheço.

Nesta sociedade marcadamente hedonista em que tendemos a viver nos países com mais recursos (aparentemente) disponíveis, a obsessão tóxica pelo comer, com ou sem prazer, tornou-se uma das formas prediletas de escapismo. Transformou-se num dos meios mais adotados para fugirmos à realidade crescentemente complexa, e porventura assustadora, em que cada vez mais gente parece (que quer) viver.

Basta pensarmos naqueles que conhecemos e encontraremos certamente alguém que não tem nada de sólido a sustentar a sua identidade, antes apenas o medo. O medo dos demais, da verdade, da bondade, do amor e – sobretudo (e dado que temos perdido o receio de O ferirmos sempre que nos entregamos ao desamor) – de Deus-Amor (ou dos deuses que escolhemos para O substituir).

Julgo que, no fundo, todos sabemos que uma pessoa, ou uma sociedade, que só sabe viver no hedonismo, rapidamente deixará de ter prazer, pois este passará o seu prazo de validade. Contudo, não é raro entregar-nos à toxicidade ansiosa de relações desnecessárias, seja com o comer, por obsessão, mais do que seria necessário, seja com o comer, por alarde, aquilo que possui sabores mais delicados, raros e preciosos. Surge, em consequência disto, uma relação desequilibrada com a alimentação e o seu propósito fundamental.

Eis-nos quase que reduzidos àquela que não deveria ser mais do que uma função da nossa vida – a nutrição –, vendo-nos impedidos de, também por uma vivência mais saudável desta função, nos abrimos a atitudes mais humanizad(or)as e personalizad(or)as. Não tenhamos dúvidas: as vezes em que, depois do consumo de alimentos segundo aquela(s) formas(s) gulosa(s), nos sentimos frustrados, desiludidos e desencantados, são um claro alerta de que a gula, enquanto absolutização da nutrição, não nos realiza, antes destrói.

Pior ainda: se pela nutrição (a poder ser, eventualmente e com toda a legitimidade, gozosa) orientada ao bem (que só é realizado pelo amor) nos podemos associar a um Universo que também existe para se nos oferecer como meio da nossa realização, então, quando pervertemos essa oferta, pervertemos identicamente esse Universo. A conclusão disto, embora geralmente não a queiramos reconhecer, é clara: não há nenhuma ecologia séria se enveredarmos por relações gulosas com o que tomamos como alimento. Se, em vez de deixarmos aflorar em nós a energia suscetível de nos ser comunicada pelos alimentos, os excisarmos desta sua virtualidade.

Esta gula coloca-nos fora da esfera do amor, e os alimentos, em vez de poderem ser uma transparência do Deus-Amor que sustenta o real, convertem-se numa barreira opaca para a nossa vivência d’Aquele e deste. Em vez de serem veículos de vida, tornam-se em portadores de morte. Em vez de promoverem a festividade e a alegria, despromovem-nos à tristeza e à taciturnidade.

Todos sabemos que a alimentação exagerada e até às vezes requintada – como com este ou aquele alimento, caro ou caríssimo, que em pequenas doses é delicioso, mas que em doses maiores é venenoso – está na origem de diversas doenças “biológicas”. Muitos de nós também já estamos atentos à circunstância de que tal gula também está na raiz de distintas enfermidades ditas “psicológicas”.

Contudo, somos muito menos aqueles que estamos conscientes do facto de que tal problema também está na origem de desajustes na nossa irrefragável dimensão espiritual – tais como a impaciência, a agressividade, a ego-referencialidade e o ódio. Tudo isto impede-nos de transcender o que em nós é meramente biológico, psíquico e resultante do nosso “ego”. Ocorre que, apesar desta ignorância, isto é mesmo verdade; e se não nos apercebermos do quão isso é nocivo, talvez seja por estarmos, desde há uns decénios a esta parte, submergidos no “foodporn”.

Já não é apenas a sexualidade que se tornou selvaticamente comercializada e provocadoramente promovida sob maquilhagens de exagero. O mesmo tem acontecido com a alimentação. Os alimentos já não precisam de ser alimentos – pois até se usa plástico para simular pães e finge-se que o creme de barbear é chantilly – desde que estimulem o desejo de comermos algo devido à sua “beleza”.

“A beleza salvará o mundo”, dizem, desde Dostoievski, tantos e tantos – a maior parte das vezes sem saberem o que tal autor russo pretendeu dizer com isso na obra “O Idiota”. Mas não será, certamente, esta beleza (nem qualquer outra a si análoga) que, igualmente usada de modo mitigado por afamados gurus da culinária, só engana, manipula e destrói. 

A alimentação e o alimentar-nos não são algo negativo, muito menos culpabilizante. Elas são realidades maravilhosas e deslumbrantes, mas, para isso, devemos evitar que, fruto de aspirações que lhes fazem adquirir uma finalidade que não lhes é adequada, sejam algo que nos brutalize. Algo que, nomeadamente, nos faça esquecer que um dos mais evidentes e saudáveis deleites de qualquer refeição é o de a podermos viver e compartilhar entre companheiros (de “cum” + “panio”: “[comer] juntos o pão”).

Eis algo que implica, imediatamente e por mais que nos custe, que não nos podemos olvidar, quando estamos a comprar e a ingerir alimentos, de todos aqueles que vivem a, e na, fome. Destes, todos nós somos responsáveis. Todos nós, sem dúvida, mas sobretudo aqueles que desperdiçam, quer alimentos, quer dinheiro em comida injustificadamente dispendiosa. Mas quantas vezes não preferimos que o fogo do amor esteja congelado no frio do nosso “ego”, em vez de aparentemente desaparecer ao se dar continuamente aos demais?

Se assim é, devemos escolher, com cuidado, aquilo que verdadeiramente precisamos para nos alimentar e, ao mesmo tempo, tentar recusar endeusar o que comemos. Vivendo desta maneira, superaremos a cisão causada pela gula e passaremos a viver numa gratidão (pelo que ingerimos) que nos impulsionará para uma multiplicação (da doação daquilo que os demais precisam de comer para viver).

Este reequilibrar da nossa relação com o Universo que nos alimenta; com o Deus-Amor que o sustenta; e com os demais de quem estamos chamados a ser companheiros, dar-nos-á uma maior paz, calma, bonomia e serenidade. Mais: dar-nos-á, em especial, a capacidade de separarmos o nosso amor do nosso, sempre tirano, egoísmo – que outra coisa não é do que o nosso “eu” fechado sobre si mesmo, numa atitude de autocontemplação no espelho que crê encontrar na “menina nos olhos” do seu insensível empedernimento.

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