Encarar o Mal em Busca do Bem
Recentemente assistimos estupefactos ao retorno da violência. Acompanhamos a caminhada e tomada do poder por parte de um desses grupos terroristas que pairam por este mundo. Movimento este que não obteve qualquer resistência, algo que ampliou o nosso espanto perante tal acontecimento. Aquilo que negamos e reprimimos entrou e apareceu sem resistência e de forma violenta, pois a porta escancarou-se.
O retorno do reprimido, do não encarado, mas que está lá, é algo que sabemos que um dia e regra das vezes sem aviso acontecerá. Sabemos sem saber, teimando em ignorar aquilo que anuncia, até que um dia o reprimido explode por entre as nossas mãos. Trata-se de um mecanismo que nos faz recordar o velhinho mestre Freud quando nos dizia que aquilo que não encaramos, tende a repetir-se.
Tomemos aqui o encarar – o que está – como recordar, lembrar, condição inicial para enfrentar o que tem de ser encarada pela pessoa, pelo grupo, pela comunidade ou sociedade, para que não se instale uma compulsão à repetição. Recordar não de qualquer modo, nem de qualquer jeito, mas podendo ver no recordado novas e renovadas possibilidades.
Retomando Freud, o processo seria: recordar, repetir, para poder vir a elaborar (integrar, transformar e prosseguir). Este processo só é possível com acolhimento do que está, ou seja, daquilo que experimenta o indivíduo, a pessoa, o grupo, a sociedade. Acolhimento que apenas existe no tempo e espaço que se oferece como escuta, no tempo e no espaço que se oferece como promessa e possibilidade de mudança e transformação.
Mudança e transformação que apenas é possível quando o outro humano, o contexto, a cultura, e a condição de vida, lhe ofereçam novas e renovadas possibilidades para sentir, pensar, agir e ser com dignidade e respeito para consigo e para com os outros. É dizer uma nova e saudável relação como tão bem defendia o saudoso psicanalista Coimbra de Matos.
Onde existem mais armas do que livros, mais fome do que alimento, mais desocupação do que trabalho, mais violência do que liberdade, mais repressão do que jogo ou ludicidade, onde apenas isso existe, não é possível a paz.
Perante o cenário e contexto aqui em reflexão, uma das imagens recentes que mais me impressionaram, foi ver estes jovens homens que se fazem acompanhar armados até aos dentes e que são capazes de matar não olhando a quê nem a quem, a se divertirem num parque de diversões, a passear nos carrinhos de choque com as suas Kalashnikovs, a subirem nos cavalinhos de carrossel, com o seu corpo a tatear algo que sabe que lhe falta, em movimentos desajeitados mas ávido de agarrar algo que perdeu - a sua infância. É um absurdo! São crianças desamparadas no corpo de imaturos adultos.
A este propósito convém recordar ao leitor que o bebé humano começa a vida com fé na bondade e no amor. O bebé humano espera uns braços que lhe deem colo, um seio que o alimente, uma mãe e um pai que respondam às suas necessidades fisiológicas e de afeto, e uma comunidade e sociedade que o acolha, cuide e lhe proporcione cultura.
Aqui radica a raiz da esperança, ele, o bebé, espera receber o que necessita. Se não recebe, se a espera é longa, e a resposta ambivalente ou inexistente, molda-se o terreno onde nasce a desesperança, o desamparo e o pânico. Esta espera primordial com a sua resposta efetiva é a base da esperança. A esperança estrutura-se na resposta com sucesso ao esperado. Só depois, com o tempo e após a consolidação de uma base segura e confiante, bem mais tarde, a esperança, de espera passa a caminho. Aqui chegada, a esperança deixa de ser uma mera espera para ser um caminho que se faz.
Onde falta o amor como resposta, base e promessa de caminho, só pode nascer a indiferença, a frieza, a raiva, o ódio, e a crueldade.
Existe um autor que nos pode ajudar nesta tentativa de compreensão deste fenómeno que é a agressividade e destrutividade humanas, trata-se de Erich Fromm.
Erich Fromm é pouco falado, esquecido até, nestas reflexões em torno das violências. Ele foi um filósofo e psicanalista, discípulo direto de Freud, um dos representantes da famosa Escola Frankfurt, uma corrente de pensamento humanista e progressista com um peso importante entre os anos 40 e 60 do século passado.
Diz-nos Fromm, um indivíduo profundamente desenganado e desiludido pode começar a odiar a vida: “se não há nada, nem ninguém em quem crer, se a fé na bondade e na justiça não foi mais do que uma ilusão disparatada, se a vida é governada pela desunião e não pelo que nos une, então, realmente, a vida torna-se odiosa; já não se pode sentir a dor do desengano. O que se deseja demonstrar é que a vida é má, que os Homens são maus, que o próprio é mau. Convertendo-se num cínico e destruidor. Esta destrutividade é a destrutividade da desesperança. O desengano da vida conduziu ao ódio à vida. A pessoa que não pode ou não sabe criar quer destruir.
Perante a violência e a destrutividade o que nos propõe Erich Fromm?
Propõe-nos o desenvolvimento da capacidade criadora e produtiva do Homem: “o único remédio para a destrutividade compensadora (falta de amor), é o desenvolvimento no Homem do potencial criador, nomeadamente através do desenvolvimento da sua capacidade de fazer uso produtivo das suas capacidades humanas. Unicamente deixando de ser inválido deixará de ser destruidor e sádico, e apenas só com circunstâncias em que o Homem se possa interessar pela vida acabarão os impulsos que fazem tão vergonhosa a história passada e presente do Homem.
O que Fromm nos propõe, em grande escala, ou seja, a nível macro, só é possível com investimento numa educação humanizada e inclusiva, com investimento económico na paz e não na guerra, com investimento nas atividades humanas produtivas e promotoras de vida, onde a vida é o centro.
Porque nenhuma guerra é santa ou justa, não podemos tolerar mais este tipo de narrativas, venham elas de que lado vierem. Só pode ser santo ou justo aquilo que tem a vida como centro. Curiosamente a palavra santo tem como base etimológica o significado de inteiro, ou seja, só aquilo que é integro é próximo à vida. Nestas alturas de exacerbação também assistimos a discursos extremados, que nos separam mais do que nos unem, nomeadamente: nós, e eles, os bons e maus, ocidente, médio-oriente, entre outros.
Novamente com o auxílio de Fromm, a adesão a este tipo de persuasão: “depende sobretudo da falta de pensamento e sentimento independentes e da dependência emocional da grande maioria das pessoas em relação aos seus líderes (acrescento os fazedores de opinião). No seguimento: “sempre que exista esta dependência, aceitar-se-á como real qualquer coisa que se exponha com força e persuasão. Os resultados psicológicos da aderência à crença numa suposta ameaça, são desde logo, os mesmos que os de uma ameaça real. As pessoas sentem-se ameaçadas, e para se defenderem estarão dispostas a matar e destruir”.
A constatação e análise de Fromm é inegável, veja-se a história recente dos conflitos da humanidade ao longo do tempo, analise-se os meandros, as manipulações, as mentiras e falsificações de modo a justificar guerras e intervenções armadas. Fromm sabia bem do que falava, pois além de psicanalista, viveu na pele a crueldade do regime nazista tendo ele que se exilar nos EUA a quando da segunda guerra mundial.
Perante o cenário atual, o que nos resta é estabelecer boas alianças, o que do ponto de vista psicológico é cuidar das relações interpessoais, cuidar da saúde e da educação integral, no fundo cuidar da Vida. Que a Vida seja o nosso centro, porque uma vez cientes do centro tudo flui, tudo gira com naturalidade, e assim a vida vai, a vida vem.
Texto e Fotografia | Vítor Fragoso - Psicólogo Clínico e Psicoterapeuta
Sugestões de Leitura |
Fromm, E. (1975). Anatomia Da Destrutividade Humana, Rio de Janeiro (Zahar Editores).
Fromm, E. (1992). El corazón del hombre. Fondo de Cultura Economica.
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